Um conto sobre o infinito - Francisco Ohana
Um
conto sobre o infinito
A luz da rua empalidecia de
indecisão o fim de tarde. Gostava de anoitecer porque as pessoas voltavam para
casa, porque os sons começavam a ter eco, porque a brisa era fria. Porque as
janelas ficavam brancas e amarelas e a vida parecia uma piscina. Um mecanismo
artificial. Seguia as marcas de sapato depois de poças na calçada sobre as
quais gente e gente. Chutava pedacinhos de galho, entrava numa loja de vestidos
e ia ao banheiro. Procurava gotas secas de xixi na porcelana, denunciando que alguém,
além dela, havia estado ali. Notava que os animais da noite (formigas voantes,
libélulas e demais insetos) eram outros que os do dia – sabia de histórias de
bichos com hábitos noturnos na mata detrás dos prédios. Olhava janela adentro
nos andares baixos e via a cena repetida da caixa de música da vida particular.
E, assim, ainda não existia dia seguinte no meio do ano.
Não importava quantas cidades viesse
a conhecer – seu mundo era um bairro de praia. Batia à porta do teatro: Quanto é? Acostumara-se à superfície dos
espelhos do salão de entrada, ao suspense no cartaz de um novo espetáculo. Nada
lhe era dito da luz, do distanciamento, das coisas que sufocavam. Boa pergunta,
boa resposta: Entra, menina. Menina.
Ignorava o intuito de tamanhas generosidades, e tudo era mais prazeroso quando
tinha bom humor, quando nada quebrava nas prateleiras e decidia-se por caminhos
estreitos, contando ladrilhos, alcançando muito eloquente as muretas de pedra. Seus
passos eram apenas comparáveis a si próprios, numa amarelinha desordenada. Naqueles
ensaios, contudo, importavam-lhe mais as sombras das cadeiras no fundo da
plateia vazia, como um lugar de edificações ilusórias. Como um montão de
entulho no espaço. Era isso que lhe falava melhor, quando a arte permanecia no
interior do teatro morto. A bailarina dança e fala, e aquele discurso logo se
dilatará.
Na boca de Luísa, as instituições
passam, mas as motivações para desenvolvê-las, não. Os motivos persistem. Se de
algum modo um estado de coisas passa, os homens continuam. E outros, depois. E
ainda, outros, numa história de impropriedades sobre impropriedades. Diante da prepotência
da natureza e da transitoriedade do corpo, restam os construtos institucionais
e o incompreensível mal-estar que deles vem. (Menina ouve.) Sua investigação sobre a felicidade deixava a todos,
espectadores, ainda mais desprotegidos, ao fazer graça da experiência milenar
que nos trouxera até ali. A iluminação dá uma tessitura de bruma ao palco, como
se a trama do texto se reproduzisse nos focos sobre a atriz. Não se tratava de um
personagem, mas dela própria, da menina de pescoço curvado para trás, que em
Luísa se via, deixando tombar a cabeça no encosto. Assim ela era delicadamente
convidada a olhar para cima, a ouvir grego. E vivia uma quimera de felicidade
no atropelo de seu pequeno universo, nos retalhos de frases e passos circulares.
Nos dedos que chamam para um instante de suspensão à beira de uma terceira
margem: Você tem medo de sonho por quê? Prefere
vida real? A menina olhava para Luísa como se buscasse segurança em lembranças
que não possuía. Agia como se nada fosse banal – pois não era. O bairro de
praia. Os modos do gordo que come pão com queijo amarelo, da velha de braços
engelhados que se mela de doce de chocolate mesclado na confeitaria. E franzia o
rosto, via um príncipe de bermuda, reconhecendo-o por seu jeito de retornar de
um beijo. Devagar... Devagar... Devagar e as costas pendidas, tudo bastante
verossímil, muito convincente.
Ela gostava das cenas daquela
coreografia. Punha as mãos no peito e sentia sua taquicardia, pressionando a si
mesma em constrição encolhida, ouvindo as batidas do peito enrolada sobre si. Buscaria
Luísa inúmeras vezes. Imaginaria seus passos de dança, seus cachinhos. Ou os
cabelos de lado, presos com grampos intermináveis, ou num coque acima da nuca. Luísa.
Luísa. Que deixava um cheiro de banho por onde passava. Seu trajeto para vê-la não
era trivial: às vezes ia a pé, às vezes de bicicleta, às vezes de ônibus, às
vezes de metrô e, às vezes, combinava dois desses meios de transporte. Comprava
pãezinhos e pastas, tomava um suco, tinha dor de barriga, mas preferia ir. Um
dia, por fim, abraçaram-se, subiu um cheiro estranho de talco, a ameixa que a
menina mordia rolou pelo chão, parando num canto empoeirado do palco. Desceram
até a pia, lavaram a fruta, secaram-na e a menina voltou a comer: Se você soubesse o que sabe agora sobre o
que eu fazia, teria vindo? A criança: Sim.
Então correram em círculos, deitaram no chão, dois seres pisantes contidos em
seu movimento. E a pequena, desde então (todos os dias), passou a enfiar os
dedos das mãos entre os dos pés – tirando urubus e sujeirinhas – para aumentar
o espaço entre eles, alargá-los, quando chegava em casa.
Conto escrito
para o encontro de 19/08/2014
Francisco Ohana é economista e participa de atividades que o mantenham ligado às artes, principalmente literatura, teatro e música. Frequenta o clube de leitura do Baratos da Ribeiro desde fevereiro de 2014.
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