Mote do encontro 28/10
Texto lido por Daniela Ribeiro
Os falsos cretinos
(...)
O
trágico da nossa época ou, melhor dizendo, do Brasil atual, é que o idiota
mudou até fisicamente. Não faz apenas o curso primário, como no passado.
Estuda, forma-se, lê, sabe. Põe os melhores ternos, as melhores gravatas, os
sapatos mais impecáveis. Nas recepções do Itamaraty, as casacas vestem os
idiotas. E mais: – eles têm as melhores mulheres e usam mais condecorações do
que um arquiduque austríaco.
Não sei se me entendem e se concordam comigo. Mas é o
próprio óbvio. A olho nu, qualquer um percebe a ascensão social, econômica,
cultural, política do idiota. Outro dia, passou por mim um automóvel das Mil e
uma noites, sim, um desses Mercedes irreais, com cascata artificial e filhote
de jacaré. Lá dentro ia um idiota flamejante.
Desde
Noé e antes de Noé, jamais um idiota ousaria ser estadista. É verdade que, na
velha Roma, um cavalo foi senador. Mas o cavalo é um nobre animal, de
maravilhoso frêmito nas ventas. E nunca se viu um idiota relinchar. Pois bem.
Hoje, tudo é possível, tudo. Há idiotas liderando povos, fazendo História e
fazendo lendas. Mao Tsé-tung seria impossível em outra época. Em nosso tempo,
passa por ser um estadista gigantesco. Há rapazes, aqui, que se dizem da “linha
chinesa”. Embora a distância geográfica que os separa, jovens brasileiros estão
por conta de Mao Tsé-tung.
E,
assim, lidos, viajados, falando vários idiomas, maridos das melhores mulheres –
os nossos idiotas têm também os melhores cargos e exercem as funções mais
transcendentes. Eu disse que estão por toda a parte: – na política como nas
letras, nas finanças como no cinema, no teatro como na pintura. Outrora, os
melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores.
Criou-se uma situação realmente trágica: - ou o sujeito se submete ao idiota ou
o idiota o extermina.
Dirão
que exagero. Absolutamente. E é tão importante ser idiota, tão decisivo, que já
desponta a fauna, sem precedentes, dos “falsos cretinos”. São rapazes
inteligentíssimos, bem dotadíssimos, alguns beirando a genialidade. Pois bem. O
sujeito, para viver, ou sobreviver, enterra o próprio espírito, como as joias
de Raskolnikov. E, se for preciso, ele finge debilidade mental e põe-se a babar
na gravata, copiosamente.
Eu citaria o exemplo do Ferreira Gullar. Ex-poeta
maravilhoso. Seu livro A luta corporal
ficou, se me permitem a ênfase, como um momento de eternidade. Mas o Ferreira
Gullar foi cercado, envolvido, triturado pelos idiotas. E, hoje, só consente em
ter espírito, à meia-noite, num terreno baldio, sob a luz de fúnebres lampiões.
(15/4/1968)
RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2007.
Nelson
Rodrigues nasceu no Recife, em
1912. Aos 5 anos, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, indo morar em
Aldeia Campista, bairro que depois seria absorvido pelos vizinhos Andaraí,
Maracanã, Tijuca e Vila Isabel. Em contato com a imaginação fértil do futuro
escritor, a realidade da Zona Norte carioca, com suas tensões morais e sociais,
serviu como fonte de inspiração para Nelson construir personagens memoráveis e
histórias carregadas de lirismo trágico. Lado a lado com o teatro, o jornalismo
foi para ele um ambiente privilegiado de expressão. Em 1943, sua segunda peça, Vestido
de Noiva, revolucionava a maneira de se fazer teatro no Brasil. Morreu no
Rio de Janeiro, em 1980, aos 68 anos. Além dos romances, contos e crônicas,
deixou como legado 17 peças que, vistas em conjunto, colocam-no entre os
grandes nomes do teatro brasileiro e universal.
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