Mote do encontro 14/10



Texto lido por Daniel Russell Ribas
 
Minha vida sem banho




O programa-piloto consistia em apadrinhar os recém-chegados transmitindo-lhes com a maior clareza possível a missão do Instituto e ensinando-lhes o uso dos instrumentos de que dispúnhamos para levar essa tarefa adiante.
O segundo grupo que me coube treinar era formado por três jovens, sendo duas moças magrinhas de óculos e cabelos longos e cacheados – uma loira, a outra ruiva – e um rapaz igualmente magricela de modos muito educados, também de óculos, porém de cabelo preto e bem curto. Para alguém que se aproximava dos trinta anos, como eu, esse trio era realmente jovem (estavam todos em fase de conclusão de alguma faculdade). Além do temperamento judicioso e pacato, também essa diferença de idade contribuía para facilitar a imposição da minha autoridade sobre eles, a qual instalou-se de forma natural.
Ao final de um dia de trabalho, chamei o estagiário em minha mesa e convidei-o para tomar um café na padaria ao lado da sede do Instituto. Agnelo – esse era o nome dele – estranhou a aproximação. Olhou-me assustado.
– Vai um café mesmo? – perguntei, ambos já acomodados a uma mesinha redonda de metal com o nome de uma cerveja gravado no tampo.
– Prefiro chá preto – respondeu Agnelo.
Passamos o pedido a uma atendente. Fui direto ao assunto:
– É delicado o que eu vou te dizer, mas tenho certeza de que vai ser bom para você.
– ...
– Eu gosto de você. Te acho um cara muito talentoso, Agnelo, e queria dizer o seguinte...
– ...
– Bom, é o seguinte: é que você precisa trocar de desodorante, rapaz.
– ...
– Não me leve a mal. Mas alguém precisava dizer isso. Você ainda é muito jovem...
A moça trouxe o chá e o café.
– Certamente não percebe, mas todo dia, já no começo da tarde, o seu cheiro de corpo fica difícil de aguentar. Elas não dizem nada, pelo menos não para mim, mas imagine o que é isso para as meninas, Agnelo...
– ...
– Estou falando como amigo, como homem, para alertar você. Pode ser negativo inclusive no trabalho, você entende? Trocar de marca, não sei, talvez já resolva o problema.
– ...
Agnelo tomou alguns goles de chá olhando para baixo, segurando o silencio. Coçou a cabeça.
Eu me sentia bem. Aliviado. Agira de uma forma sem dúvida desagradável, porém sincera e certamente com grandes consequências para a vida daquele rapaz.
– Desculpe, não queria ser grosseiro nem importunar você, mas alguém precisava te alertar sobre isso.
– ...
Considerei também, que não era fácil, para ele, ouvir aquilo tudo dito de modo tão direto e, ainda por cima, pelo seu superior hierárquico, pela pessoa que decidiria, ao final, por sua permanência ou não no Instituto.
Agnelo limpou os lábios com um guardanapo de papel e virou-se para mim.
– Olha, Célio, agradeço muito a sua franqueza. Tenho certeza de que está fazendo isso com a melhor das intenções. Obrigado, mesmo.
– ...
– Mas vou dizer uma coisa que talvez o surpreenda: eu não uso desodorante nenhum. Isso já tem uns dois anos. E não pretendo voltar a usar.
– ...
– É uma opção minha, não um desleixo ou esquecimento.
– ...
– É um pacto que fiz com a minha namorada. Ela também não usa.
Argumentei, retomando o fôlego:
– Se é por defesa do ambiente, vocês podem usar desodorante de bastão, sabe disso, não é?
– Claro que sei. Mas não tem nada a ver com isso, Célio. É que a gente gosta do cheiro um do outro. Desde que nos conhecemos. É um troço que excita a gente. Sei que é difícil entender, mas é isso mesmo. Não tem segredo nem militância nessa história.
– ...


AJZENBERG, Bernardo. Minha vida sem banho. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2014.





Bernardo Ajzenberg publicou, entre outros livros, Variações Goldman (1998), A Gaiola de Faraday (2002, prêmio de Ficção do Ano da Academia Brasileira de Letras), Homens com mulheres (2005, finalista do Prêmio Jabuti), Olhos secos (2009, finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura) e Duas novelas (2011). Escritor, tradutor e jornalista, nasceu e vive em São Paulo.

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