Partilha amigável - Clara I. P. Mello



Partilha amigável


- Toma, fica com ‘o sexo'. Acho que não vou mais usar.
- Hum... é? Enão me dá.
- Posso ficar com ‘a parcimônia'? Sei que era sua, mas é que eu nunca tinha tido, agora me acostumei e já não sei viver sem ela...
- Tá, mas então você concorda em deixar ‘a desinibição' pra mim?
- Se ela quiser, pode ficar...
Quando recobrou a atenção no que estava se passando a sua volta, parecia que o pessoal da empresa de mudanças estava parado ali na frente dela esperando orientações há pelo menos uma hora.
Levantou os olhos que estavam fixos num jarro de vidro e deu de cara com o Sr. Luiz, encarregado chefe da mudança. Na blusa dele leu: "Gato Preto", e daí pensou que ‘a sorte' não poderia ser partilhada. Ele e ela deveriam mantê-la porque o azar de um deles poderia comprometer os projetos de ambos.
A sala foi-se esvaziando e já se ouvia o eco do apartamento vazio.
Já nos últimos itens despachados viu que ia sobrando a caixa de fotografias. Como é que eles não tinham falado sobre quem ficaria com as fotos?!
Na verdade não era uma caixa de fotos, mas uma pequena arca. Ao longo dos anos, com o falecimento de sucessivos familiares dele e dela, foram se juntando mais e mais acervos fotográficos. Para aquelas fotos de familiares, não havia dúvidas de que cada um ficasse com o que lhe dizia respeito; mas e as fotos deles mesmos, como ia ser?
Por um momento lembrou que sempre planejou que as primeiras coisas a serem salvas de um eventual incêndio seriam as fotos. Pois ali estão elas, justamente algumas das últimas coisas que sobraram no apartamento praticamente vazio...
Pensou então que sobre as ‘fotografias' nunca há uma decisão consciente, um dos dois simplesmente as leva e o outro finge que não percebeu, o que é muito diferente de concordar com isso.
Fez uma fantasia sobre como seria agradável que, durante um jantar, fossem escolhendo, um depois do outro, foto a foto, sem direito de arrependimento. Mas aí atinou que não haveria mais jantar, nem mais brincadeira feliz para eles no futuro. 




Clara Innecco Pereira de Mello, carioca, solteira, nascida no Rio Comprido, filha única de mãe Niteroiense, bibliotecária, e pai nascido em Nova Iguaçu, desenhista industrial. Formou-se em direito na década de 1990 e vem atuando como advogada desde então. Escrever textos fora do contexto de sua profissão nunca foi uma possibilidade explorada até o recente e prazeroso encontro com o 'Clube da Leitura'.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz