Nicole e o autorretrato - Andréa Rodrigues



Nicole e o autorretrato


Nicole tinha nascido num subúrbio de Paris, há treze anos e alguns meses.  Tinha esse nome assim francês mas era filha de argelinos, imigrantes na França desde que eram adolescentes. Nicole estudava numa escola a duas quadras da sua casa. No caminho, passava por um prédio que tinha uma placa cheia de nomes. Desde que tinha uns 8 anos ela tinha resolvido parar para ler o que havia ali. Era uma lista com o nome de crianças que moravam naquele prédio na época da segunda guerra e que foram levadas dali para os campos de concentração, pelos alemães. Desde que tomou conhecimento disso, Nicole tinha pensado que, tivesse ela nascido muito antes, poderia ter sido vizinha de dezenas de crianças que desapareceriam para sempre um dia.  A distância que havia entre Nicole e as crianças que foram levadas de suas casas era apenas de tempo. Elas moraram na mesma rua que ela. Tinha um escorrega no prédio delas. Talvez Nicole brincasse ali com elas, no alto daquele escorrega, até o dia em que elas simplesmente desapareceriam de suas vidas.
Nicole caminha para a escola numa manhã de inverno. Ela já saiu de casa mas ainda está escuro. O que precisa ser aprendido tão cedo assim, antes mesmo do dia clarear? Hoje tem aula de francês. O professor é novo, entrou no lugar de um outro que pediu licença.
O professor distribui um livro para todos na turma. Chama-se O diário de Anne Frank. Ele quer que os alunos leiam para que escrevam um autorretrato – para conhecer melhor seus alunos novos. O professor explica o que é um autorretrato. Ele lê um trecho do livro, em que Anne conta como ela é, o que gosta de ouvir e ler. O professor quer que os alunos se inspirem na escrita de Anne Frank. Mas a vida deles não é cheia de emoções como foi a de Anne Frank,  diz um colega de Nicole. Nós só dormimos, acordamos, vamos para a escola, comemos e dormimos de novo. O professor fica espantado. Vocês não acham nada de interessante na vida de vocês? Não têm nada a dizer sobre ela? 
Nesse dia, Nicole voltou para casa mais lentamente. Parou novamente na frente da placa do prédio, como se nunca tivesse lido aqueles nomes. Releu o nome de cada criança. Imaginou seus rostos, pensou como teria sido a vida de cada uma. A vida que teria seguido, com muitas tardes de brincadeiras, com muitas gargalhadas, com muitos professores e deveres de casa. No pátio interno quatro crianças corriam, brincando de pique esconde. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, lá vou eu. O menino ruivo foi achando um a um dos seus amigos escondidos. Conseguiu encontrar todos. Mas olhando mais atentamente, de fora do prédio, Nicole teve a impressão de ver mais crianças, tão bem escondidas que talvez nunca fossem vistas.
“Meu nome é Nicole, tenho 13 anos, gosto muito de ouvir música e passear pelas ruas do meu bairro.”


Conto escrito para o encontro de 29/07/2014 


Andréa Rodrigues é professora de Prática de Ensino de Língua e Literatura na UERJ e frequenta o clube da leitura desde abril de 2013. 


 

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