Mote do encontro 19/08



Texto lido por Jussara Ribeiro de Oliveira


Pergunto a ela: “Se você soubesse o que sabe agora, que esse romance é uma fraude, preferia não tê-lo vivido?”. Ela não hesita: “Preferia ter vivido tudo o que vivi. E ter parado exatamente onde parei. Ele me deu muito”.
Não é uma ilusão. Por paradoxal que pareça, ela ganhou muito. Enquanto viveu o romance, ele era real. O homem, que hoje sabemos que não existe, era real. Essa realidade a resgatou, dia a dia, de uma vida menos viva. “Eu precisava do olhar do outro. De um homem que não corresse quando eu dissesse a minha idade, que me lembrasse de que sou desejável, que me lembrasse principalmente de que quero compartilhar não o extraordinário, mas o comum da vida. Quero ter alguém comigo dividindo o café da manhã, compartilhando as experiências do cotidiano e também arrancando a minha calcinha. Estou aberta para isso e antes não estava. Ele me devolveu algo que estava anestesiado em mim. Às vezes era tão forte essa percepção que sentia como se tivesse voltado a ovular. De certo modo voltei, não biologicamente, mas de uma maneira mais profunda. Antes eu me sentia só um corpo mais flácido do que na juventude, um rosto marcado pela idade. O olhar dele foi o espelho onde eu pude me enxergar muito além disso, pude me enxergar como uma mulher, na inteireza do que é ser uma mulher. Ele não existe? Talvez seja um coletivo de pessoas conversando comigo para me extorquir depois? Mais um golpe sórdido? Não importa. Porque esse olhar sobre mim mesma ninguém pode me tirar, esse olhar agora é meu. Seja lá quem for, me despertou, me ajudou a resgatar a minha integridade como mulher, como pessoa, o muito mais que eu sou para além de um corpo que envelhece. Nesse sentido, sou muito grata.”
Para ela, talvez o conselho a outras mulheres seja: “Caia no golpe, acredite, mas não pague”.

Texto completo:




Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz