Fotogramas - Vinicius Varela
Fotogramas
Durante
a segunda guerra, os soldados só tinham tempo de ler as cartas uma única vez
antes que elas fossem metralhadas por balas ou gotas de chuva. A batalha
cuidava de assassinar, borrar caligrafias. Não havia jeito de preservá-las. As
fotos também. Pouco a pouco a pessoa no retrato ia desaparecendo até que só
restasse um papel em branco. Foi assim durante a primeira guerra, nas guerras
antes dela, na segunda guerra e suponho que será assim nas próximas.
O
momento em que um soldado ia ler uma carta era semelhante ao da última refeição
do preso no corredor da morte. Era um momento solene. Era comum, no meio do
caos e destruição provocada pela guerra, ver um soldado lendo uma carta ou escrevendo
da maneira que podia. A leitura era o pouco que restava de humano ou aquilo que
mantinha uma lembrança de humanidade nas tropas. Essas epístolas eram mal
escritas em papéis amassados e velhos, guardados nos bolsos de suas calças,
dentro dos coturnos ou no fundo de seus capacetes. Feitas a carvão, lápis
pequenos do uso apontados à faca ou qualquer coisa que estivesse à mão. Nos
dias de recebimento do correio, grande agitação tomava conta da base militar. Seguido
à ansiedade e inquietação um silêncio se instalava no acampamento. Nessas horas
o tempo parava. Não havia bombas nem tiros. Não havia guerra. O horário da
correspondência era o mesmo em todas as bases, então, uma trégua momentânea era
concedida. Aliados e inimigos, liam com avidez o relato daqueles que lhes
escreviam, tentando saber notícias sobre o mundo. Queriam palavras de consolo
de suas mulheres. Fotos. Pingentes. Perfumes. Colares. Qualquer coisa que fosse
externa àquilo. Que viesse de fora. Usavam esses objetos como amuletos, uma
forma de não esquecer que lá fora ainda havia um mundo. Durante os bombardeios,
eles seguravam esses objetos e fechavam os olhos. Alguns os deixavam ao alcance
da vista e contemplavam aquelas miragens. Achavam que dali viria alguma
resposta ou ordem de cessar fogo. Estavam doentes. Padeciam física ou
mentalmente. A enfermidade da guerra até hoje não foi classificada. Atacava
diretamente ao espirito. Durante a noite muitos deliravam. Tinham pesadelos
terríveis e dormiam abraçados junto às suas cartas tiritando de febre. Era dura
a vida no front.
Guerra,
por exemplo, era uma palavra banida do vocabulário dos soldados. Escolhiam
outras palavras, sinônimos mais leves: conflito, batalha, luta. Até mesmo
front. Achavam que a suavidade da palavra poderia suavizar o que estava sendo
feito. Guerra não. No que escreviam para os seus parentes e amigos não se podia
mencionar tal palavra. Frequentemente se via “Aquilo” nas cartas. Os soldados
diziam que tudo “aquilo” acabaria logo.
Grandes
amores morreram na guerra. Alguns homens preferiam morrer olhando para a foto
da mulher que amavam ou lendo uma última vez uma carta preferida. Melhor que correr em direção ao inimigo
atirando alucinadamente como os outros. Você estava ali, no campo de batalha,
tentando se orientar em meio às explosões e cortinas de terra se levantando,
virava para o lado e via um soldado olhando um retrato e dizendo juras de amor,
beijando-o. Boom. Catapluft. Trá-tum. Fim.
A
guerra traumatizava. Provocava amnésia temporária ou permanente. Nos casos mais
graves alienação completa do mundo. O vulgar louco. Do soldado raso eram
desconhecidas as estratégias e objetivos. O sujeito era mandado para matar sem
nem saber o porquê. Eu era um pobre jornalista misturado com soldados mais
miseráveis que eu. Vivi quase o mesmo horror que eles. Só não tive de matar. O
que me salvou foi a câmera. Ela criou o distanciamento que me manteve são.
Passava vinte e quatro horas por dia olhando através dela. A realidade chegava
até mim filtrada por pelo menos cinco olhos: os meus óculos e as três lentes
que compunham a câmera com que eu fotograva tudo que via. Me convenci de que
estava num filme e passava os dias vendo o que me rodeava como se estivesse de
fora. O aparelho permitia que eu registrasse a história sem fazer parte dela.
Me subtraía da loucura. Estava ali apenas clicando.
Uma
das táticas da guerra é o esquecimento. Deixar o povo atacado sem memória. Saqueava-se
a cultura. Roubavam-se os documentos, os livros, mapas. Todo o acervo
bibliográfico era levado e muitas vezes destruído. A história daquele povo era
roubada. Hitler tentou fazer coisas parecidas. De repente, eles acordavam um
dia e não sabiam de onde tinham vindo quem tinham sido seus heróis, nada.
Depois vieram as lobotomias. As lavagens cerebrais. Apagar a memória à força.
Mas esses métodos não conseguiram superar a amnésia pelos livros. O
esquecimento era um veneno lento usado durante a guerra. Ia desconstruindo a
identidade. Anulando o sujeito. Logo a nação não tinha mais de que se orgulhar.
Não tinha mais nada a transmitir. Tiravam deles a capacidade de contar
histórias e pior: a sua própria.
Em
um lugar, no entanto, eles tentaram fazer isso. Foi após uma guerra esquecida.
Do dia para noite o povo se viu sem passado. Foi preciso então inventar. Diante
da falta de relatos e registros aquela nação se viu obrigada a inventar a
própria história. E assim foi. Todos participaram da construção coletiva da
narrativa. Algo lá atrás precisava fundamentar o agora ou o presente deixaria
de ter sentido. Parece que o lugar se chamava... Como era mesmo? Ficava
localizado em-
(Diário
de Vladimir Molotov, Leningrado, maio de 1943)
Relatório
Final: O Paciente Hans Klaus, 34 anos, ex-soldado alemão, continua apresentando
alucinações, lapsos temporais e crises de identidade. Ele modificou os
acontecimentos e apagou de sua memória todos os crimes de guerra. 29 de
fevereiro de 1946, Nuremberg, Hospital Psiquiátrico Alles Blank. Doutor Johan
Herzog, médico chefe.
Conto
escrito para o encontro de 14/07/2014
Vinicius Varela é sobretudo um admirador da arte. Gosta de dialogar com os diversos movimentos artísticos e com as formas de criação. Criar para ele é fundamental e se utiliza da arte para tentar explorar tudo aquilo de que a realidade apenas não dá conta. É poeta, ator, músico e contista até agora. Pois encontra-se em constante processo de antropofagia
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