um útero é do tamanho de um punho - Angélica Freitas
Recomendação de
leitura por Guilherme Preger
Recomendação de leitura de “um útero é
do tamanho de um punho” de Angélica Freitas
É sabido que os
melhores presentes são aqueles que você mesmo gostaria de ganhar. Assim sendo,
já presenteei amigos e amigas com esse livro, sem que eu mesmo o possua. Para
escrever esta recomendação, tive que seguir o imperativo poético de Rimbaud e
me tornei um “ladrão de fogo”, com o furto delicado de um exemplar.
“um útero é do
tamanho de um punho” (Cosac Naify, 2012) é o segundo livro de poesia de
Angélica Freitas. O primeiro, Rilke Shake (Cosac Naify, 2007), fez sucesso pela
linguagem bem humorada, quase ou inteiramente satírica.
“um útero...”
segue a mesma linha do humor e da linguagem cotidiana, coloquial. Mas agora, dando uma cerrada unidade à obra,
um assunto domina de ponta à ponta. Um tema tenso como uma mulher na TPM: a
“condição feminina”.
Dito assim,
parece solene, mas como diria o poeta
Carlito Azevedo na orelha do livro, Angélica relativiza o “gigantismo dos
sentimentos solenes”. Como “Rilke Shake” já mostrava, a tática é a da
profanação. E profanação aqui não é simplesmente negar os preconceitos, os
clichês e senso-comuns, os estigmas com os quais os discursos sociais constroem
a imagem feminina. Numa virada bastante contemporânea, no lugar de simplesmente
os rejeitar, a poeta os assume sem pudor. Assim: “porque uma mulher boa/ é uma
mulher limpa/ e se ela é uma mulher limpa/ ela é uma mulher boa. (…) uma mulher
sóbria/ é uma mulher limpa / uma mulher ébria / é uma mulher suja”.
A tautologia dos
enunciados de “Uma mulher limpa”, primeira seção do livro, segue verso por verso para concluir que “é da
mulher ébria e suja/ que tudo se aproveita// as orelhas o focinho/ a barriga os
joelhos/ até o rabo em parafuso/ os mindinhos os artelhos”. Aqui não estamos no
terreno da denúncia ou do protesto, mas também não mais da paródia modernista.
É mais um pastiche, o uso do discurso “ipsis litteris”, que por repetição e
similitude o exaure, mina internamente sua própria coerência e suposta
racionalidade.
E seguem os
poemas com sucessivas versões de “era uma vez uma mulher”: “uma mulher boa”,
“uma mulher insanamente bonita”, “uma mulher sóbria”, “uma mulher que gostava
muito de escovar os dentes”, “uma mulher que não se perdia”. E no final ficamos
sabendo que “uma mulher incomoda”...
Seria algo como
uma “desconstrução” do conceito de mulher, mas desconstrução é também uma
palavra muito pesada e solene. Justamente, uma das seções do livro é “Uma
mulher é uma construção”: “a mulher é uma construção/ com buracos demais//
vaza”. Este poema termina com um paradoxo: “nada vai mudar// nada nunca vai
mudar // a mulher é uma construção”.
Carlito Azevedo
fala sobre a desmontagem das “armadilhas da identidade” nessa poesia e, sem
dúvida, é a identidade que perde sua consistência e suas demarcações em todo
esse jogo poético, mas acredito que haja também um jogo entre montagem e
desmontagem, criando não apenas uma ambiguidade, mas uma “indecidibilidade”
entre o ser mulher e não ser. Lembremos que uma das epígrafes do livro é um
trecho da canção de Brecht e Kurt Weil, “Seeräuber Jenny” (Jenny Pirata) que
teve a famosa versão em português na canção de Chico Buarque, Geni e o Zepelim.
As mulheres de Angélica Freitas são aquelas que, como Geni, são boas de apanhar
e boas de cuspir, mas também são aquelas que a cidade confia para poder se
salvar.
Não se trata
apenas do reconhecimento das armadilhas da identidade, bem como antes das
armadilhas da própria linguagem. Se há algo como um “feminismo” na poesia de
Angélica Freitas, esse não se faz por um confronto nem com a identidade da
mulher, muito menos com a do homem. A inteligência desta poesia está em
localizar na própria linguagem as armadilhas de gênero e de identidade. No
poema que dá título ao livro, não apenas as imagens (“um útero é do tamanho de
um punho/ num útero cabem cadeiras/ todos os médicos couberam num útero”) que
perdem sua consistência, ou o discurso que se trai (“uma pessoa já coube num
útero/ não cabe num punho/ quero dizer, cabe/ se a mão estiver aberta/ o que não
implica gênero/ degeneração ou generosidade”), mas a própria linguagem que
pouco a pouco se desfaz, resvalando para uma linguagem muito pessoal, como uma
“língua do pê” (ou do “i”) íntima: “im
itiri i di timinhi di im pinhi”. Linguagem afetiva que é cortada por um
instantâneo de lucidez, como um soco num útero: “para que serve um útero quando
não se fazem filhos”.
A boa poesia não
é aquela que faz um elogio à grandeza da linguagem ou a sua profundidade
insondável. Proust dizia que os bons livros são escritos numa espécie de língua
estrangeira e daí Deleuze dizia que importante era o escritor se tornar um gago
em sua própria língua, tornar sua própria língua estrangeira ou estranha, como
uma nova língua: “... não é mais o personagem que é gago da fala, é o escritor
que se torna gago da língua: ele faz gaguejar a língua enquanto tal” (Deleuze,
Crítica e Clínica, Ed34, 1997).
Angélica Freitas produz, em sua língua íntima
inventada, algo como um gaguejar da língua: “um útero expulsa os óvulos/
óbvios/ vermelho = / tudo bem!/ isti tidi bim/ vici ni isti grividi”. A
linguagem não é em si sublime. Há uma
violência da língua enquanto máquina de discurso que nos faz recitar os
“óbvios” nos quais se expressam todos os preconceitos e divisões simbólicas:
“os churrascos são de marte/ e as saladas são de vênus// me dizia uma amiga que
os churrascos/ cabem aos homens porque são feitos/ fora de casa // às mulheres
as alfaces/ às alfaces as mulheres// que alguém se rebele e diga/ pela imediata
mudança dos hábitos”.
O poeta sabe que
a imediata mudança dos hábitos começa pela linguagem. A linguagem não é apenas
desconstruída para que depois possamos voltar à velha linguagem dos códigos
“óbvios”. É preciso sacrificar essa velha linguagem também. Na canção de Chico
Buarque, após o sacrifício de Geni a cidade descansa em paz aliviada. Mas na
canção original de Brecht, Jenny pede aos piratas que destruam toda a cidade. Na
poesia de Angélica Freitas, o poema está como o navio dos piratas, no cais da
linguagem, com seus 50 canhões apontados para ela.
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