A morte de Pedro Ivo - Francisco Ohana
A
morte de Pedro Ivo
Em
alguns dias, meu filho decidirá morrer.
Andava
às voltas com problemas de programação linear, multiplicadores de Lagrange e
demais aspectos da otimização. A tradição filosófica ocidental dos últimos seis
séculos me facilitara a vida, esmaecendo a cada tratado qualquer traço de
humanidade no que lia. Agentes representativos, aplicações mequetrefes do
cálculo diferencial – pouco importa. Encanta-me que o tratamento dos temas do
sustento material do homem, que um dia se revestiu de tonalidades políticas,
hoje se reduza a uma receita de bolo baseada na resolução de equações
recursivas no tempo. Tudo bem, isso não faz muito sentido, nem mesmo para mim,
mas a mecânica do sistema é simples: você supõe que o indivíduo age
racionalmente, que não morre nunca, que possui um modelo subjacente a seu
processo de decisão intertemporal de alocação de tempo entre trabalho e lazer,
considerando os sinais de mercado perfeitamente refletidos nos preços. Ufa! As
if it was like that. É como um goleiro que salta para defender a bola – ele
não sabe, mas faz todos esses cômputos intuitivamente, conforme descrito pelo
modelo. Ufa! Os pressupostos metodológicos dessas ferramentas são muito
sólidos, mas sei que não importa a verossimilhança das hipóteses. Isso é
Friedman. Hume. Tem gente muito séria trabalhando nisso em Minnesota, quer
contrariar os caras? E digo mais. O pessoal fala de crises financeiras, essa
pirralhada suja vai para as praças de Manhattan, faz greve estudantil em
Harvard ou – numa versão menos civilizada de movimento social – pega de capuzes
e quebra as vidraças dos bancos. Pergunto a eles se algum outro sistema levou
as sociedades a este nível de bem-estar. Lembrem-se de Churchill: a democracia
é o pior sistema blá blá blá. Blá blá blá. Blá. E os patetas dos amigos dos
meus pais, lembro-me bem, num apartamento de Laranjeiras, bradando em defesa do
regime albanês e votando no candidato comunista em 1989. Francamente, sem
comentários. Risível. Ou em defesa de Havana, onde não há nem aroma de menta
nas pastas de dente. Isso só pode ser brincadeira de mau gosto. A questão das
liberdades ainda persiste, e a economia de mercado oferece a resposta mais
conveniente de que dispomos.
Diante
da minha inquietação, o sujeito arrogante a quem chamavam de médico disse que é
o seguinte, o seu filho tem uma síndrome rara, síndrome de Aarskog, tem a ver
com o cromossomo X e tem caráter recessivo – dá uma olhada no nível de enzimas
–, o tratamento é fora do Brasil. Eu disse que pagaria quanto fosse necessário.
Um garoto de seis anos, flamenguista, batia em todo mundo no play, brigava pela
bola. Tudo bem, se é assim, tudo bem. O garoto estava ficando fraquinho,
pequeno, a musculatura perdia a tonicidade com o tempo e a coisa podia se
complicar ainda mais. Olha, eu não quero te desanimar, mas demora e os casos de
sucesso somam uma probabilidade quase desprezível. Foda-se, meu caro! Foda-se!
Angélica, pega o moleque e vai com ele para Chicago. Uns dias depois ela sumiu
com o meninote todo pelado, sem cabelo, com olheiras e marcas vermelhas no
corpo. Fiquei bastante mal com a cena. Putz – pensava eu –, quero acreditar que
existe alguma racionalidade na autodestruição de um corpo infantil e jovem. Só
mesmo a partir da premissa da imperfeição da criação, das mães que devoram os
filhotes, tem um mito grego que come os filhos também. Não, não sei quem é, mas
come. Não sei quem é. E nessa forma de ligação mais complexa entre vida e
morte, tomada a natureza em seu conjunto interdependente, buscava um argumento
que fosse de encontro à razoabilidade do suicídio. Vamos lá, o periquito nasce
com o bico torto, os demais filhotes o bicam todo, ele não consegue comer a
minhoca que a mãe periquito lhe traz, agoniza, morre, mas não tem o impulso de
atirar-se do alto do ninho. Por quê, meu Deus? O destino do suicida é tido como
o pior possível, mais ou menos como do sujeito que comete incesto. Em tese, não
vejo grandes problemas em nenhuma das duas práticas.
Sumiram.
Mãe e filho sumiram. Minha sogra foi para o estrangeiro às minhas custas, comprou
chocolate, perfume, cremes para a pele – sim, a velha –, tudo às minhas custas
e sob pretexto de visitar o Pedro. Num mundo de utopia deveríamos escolher
quando morrer. Ou viver no problema do consumidor. Numa caixa com dois bens,
decidindo entre um e outro, fazendo contas, derivando funções. Estava esgotado,
mas lúcido a ponto de me deixar vencer pela lógica da eutanásia. Que é
diferente do suicídio. Um deputado socialista belga propôs há alguns meses um
projeto de lei que regularizaria a eutanásia infantil. Pensei, puta que pariu.
Essa questão das escolhas soberanas era um problema, desde o marginalzinho que
decide roubar telefones celulares, até o casal que decide batizar o filho na
Igreja Católica. Por quê, meu Deus? A criança foi consultada? Foi? Que porra de
sacramento é esse? Bom. Bom, bom, bom. Essas especulações me traziam maus
pressentimentos.
Angélica
ligou. Pedro Ivo. Disse que nosso filho preferia morrer. E morreu. Fiquei em
silêncio, muito em silêncio.
Terminei
por engolir todo o silêncio ao redor.
Conto
escrito para o encontro de 24/06/2014
Francisco
Ohana é economista e participa de atividades que o mantenham ligado às artes,
principalmente literatura, teatro e música. Frequenta o clube de leitura do
Baratos da Ribeiro desde fevereiro de 2014.
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