Pipariferia, por Felipe Boaventura

Pipariferia


As pipas não nascem prontas. Não nascem no céu ou surgem em mercearias. As pipas não nascem na indústria. Elas vem da mão dos homens, e em especial, as com vida, das mãos dos meninos.


Para nascer uma pipa é preciso encontra o bambu “devês”, com sua casca verde a amarelar, e sua flexibilidade para as varetas. Suas medidas são as medidas aprendidas na tradição oral. Dos mais velhos para os mais novos. Das pipas pegas dos telhados alheios e usadas como moldes. Da experiência de tantas feitas “no olho” e que dão para um dos lados. As varetas amarradas com linha velha dão origem as pipas “carrapetas”, as “charutos”, “batatas”, “arraias”.


Depois, é preciso empapar uma pouco de arroz para usar como cola entre os papéis de seda nas cores escolhidas, e entre o papel e as linhas amarradas nas varetas de bambu para lhes dar carne. A linha “Corrente” no tamanho de um “deizinho” ou um “deizão” é indispensável, tanto para amarrar um bom cabresto de acordo com o vento do dia, como para soprar o fôlego das acrobacias na pipa.


É preciso também pegar sacos do supermercado, dobrá-los e cortá-los em formatos de fita. Amarrá-los em sequência em outro pedaço de linha velha cuja primeira extremidade terá a pipa, e na outra, linha com cerol ou até uma gillete.


Em tantos lugares isso basta para o espetáculo colorido nos céus. Mas em outros é preciso ainda mais engenharia; a arte do cerol. Para ele, um quintal, ou uma praça são palcos. É preciso acender o fogareiro onde se derrete a barra marrom de cola em uma lata enferrujada de “Neston”. Moer a marteladas o vidro em lata de “Nescau”. Depois com meia fina velha de irmã, coar o vidro para misturar esse pó com a cola já diluída em água. E passar na linha, o suficiente para ao menos sair do chão.


É preciso um terreno baldio. Sempre é preciso um terreno baldio. Tão amplo como o entusiasmo de seus meninos ao criar suas pipas. Um terreno para acampar suas brigas, suas pipas perdidas, quebradas, refeitas, escondidas, suas conspirações mútuas, seus teatros de guerra juvenis. E de lá, alguns correrem para um campo desgramado, um telhado, uma rua mal asfaltada, para assim darem voou aos desejos.


As pipas não nascem prontas. É preciso “dibicá-las”, com regência sinfônica e imaginação. Soprar fôlego ao malabarismo colorido no telão azul de nuvens. Apenas assim serão a mobi dick possível, a antena necessária, o anzol do sonho, o “telefone sem fio”.


Até o tão desejado encontro das linhas. Sim, o choque é necessário. O corte, a primeira decepção amorosa antes do amor, opera fibra e resiliência para quem o recebe. Para quem nada resta senão o amanhã e sua esperança de outro dia, uma nova pipa. E para aquele que o executa, a recompensa do trabalho, o triunfo conquistado, o prêmio desejado.


Sim, as pipas não nascem prontas. É preciso temperá-las com o sangue dos dedos, com a alegria e choro dos olhos, a satisfação dos encontros e despedidas.


Só assim as pipas tem vida.



Felipe Boaventura

Escritor carioca radicado em Portugal, autor do livro “A Cidade é um Rim”.

Conto apresentado em 23/03/2021


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