As coisas da velha, por Cynthia Dornelles

AS COISAS DA VELHA 

        Cynthia Dorneles

Não podia ver o anúncio de algo “imperdível” que comprava. Fraldas. Roupas. Maquiagens. Eletrodomésticos. Panelas. Instrumentos com finalidades inexplicáveis. Toda espécie de buginganga para cozinhas e jardins- mesmo sem jamais cozinhar nem ter jardins. Cadernos. Diários. Livros. Muitos livros. 


Sua fúria consumista começara antes da Internet, mas depois se tornara uma vasta compulsão. Que os amigos reparavam. Ela não. 


- Maria você não tem nenhum bebê. Pra quê fraldas?

- Posso dar de presente, ora. 


Sendo assim, Maria tinha um quarto de sua casa fechado, permanentemente, cheio de badulaques nunca tirados das embalagens. Atulhado até o teto, explodindo de dentro dos armários. 


Maria, gastadora voraz, era socialista. Sua juventude tinha sido passada dentro de aparelhos clandestinos dos diversos países por onde passara. Seu pai era cônsul e isso dera o start de sua vida cigana. Mas continuara assim por toda vida. Até quinze anos atrás quando, finalmente, comprara um imóvel e se instalara no charmoso bairro da Urca. 


Nas suas festas de aniversário, cantava a Internacional Socialista em espanhol. E brindava com o povo unido jamais será vencido, na hora de apagar as velinhas. Dançavam e cantavam sem preconceito, samba, Beatles, Stones, MPB até de manhã. Aos berros. Nas festas mais animadas, sempre a polícia comparecia após reclamações anônimas dos insones ao redor.


Amiga de professores, jornalistas, artistas, poetas, porteiros, empregadas, sem teto locais e afins, causava furor assassino em seus vizinhos- que não suportavam as turbas de barbudos e senhoras alegres que frequentavam seu apartamento- e pânico aos seus familiares, que temiam por sua vida, já que Maria tinha uma língua maior que a boca. Criava casos com todos os policiais e milicianos locais. Só seu filho, que morava com a avó, apoiava os hábitos da mãe e sempre a defendia quando surgiam papos em família sobre suas últimas venturas e desventuras. 


Maria tinha uma saúde física bastante boa. Não tinha dores de coluna, nem problemas gástricos. Durante a menopausa não tivera calores, só ficara com o sono mais agitado. Na verdade, a menopausa tinha sido uma espécie de “regulador” de ânimos, efeito jamais obtido com nenhum antidepressivo, antipsicótico ou ansiolítico que Maria chegou a tomar por períodos em que se sentira deprimida e buscara ajuda psiquiátrica.  


Tinha uma libido excessiva, que às vezes lhe trazia problemas e fazia o caos de sua vida sentimental. Para Maria, todos os homens que conhecia, a princípio, pareciam interessantes. E ficavam tão mais interessantes quanto mais tempo ela estivesse sem praticar sexo. Várias vezes tentara relações estáveis, mas os parceiros costumavam abandoná-la quando percebiam que Maria não era boa neste negócio de ser fiel. O que a entristecia muitíssimo, pois quando namorava era capaz de falar fluentemente as linguagens do amor.


Na menopausa, finalmente se sentira pacificada. Os hormônios tinham lhe dado trégua e enfim, ela era livre. Poder escolher era fabuloso. Os homens, agora, alguns ela achava feios, outros sem graça ou simplesmente ficava indiferente a eles. Como era bom ficar só, sem ter desejo algum por ninguém. Surpreendente como eram poucos os homens realmente desejáveis. 


Sua casa não cabia mais nenhum alfinete. Mas Maria se sentia em paz. Era tão bonitinho um timer em forma de vaquinha que vira na loja de 1,99. Seria fácil arrumar um cantinho pra ele. 


(Conto escrito para o encontro de 03/11/2021)

Biografia 

Cynthia Dorneles é uma compositora carioca que caiu na estrada nos anos oitenta. Cynthia Dorneles é poeta, escritora, compositora, intérprete, socióloga, psicóloga e fotógrafa. Dona de uma linda e poderosa voz, fez três álbuns: o primeiro Minha Aldeia apresentando suas parcerias com Bruno Tavares, que é compositor, arranjador, intérprete, além de produtor do CD. O Segundo cd Cynthia Movimentos e o terceiro Onde A Música Não Pára todos em parceria com Bruno Tavares.


Cynthia e Bruno criaram seu público fiel ao longo de anos de estrada e desde 1994 trabalharam o repertório que deu origem ao CD Minha Aldeia. 


Cynthia Dorneles participou, através da Editora Civilização Brasileira, da coletânea poética A Ebulição da Escrivatura (1978) organizada por Sergio Natureza e Salgado Maranhão, e também colaborou na fundação da revista Escracho, de Eduardo Kac (1982). Como intérprete se apresentou no MPB Shell (1980) junto com o Quinteto Violado e montou seu próprio espetáculo, Taquicardia (1987), nos moldes das récitas de poesia. Escreveu  o polêmico livro A Amante Ideal em 2000, seguido pelo livro de contos eróticos Os 1001 E-Mails Sherazade Conta Histórias Eróticas a Um Marujo Solitário, e participou da da Antologia de Contos organizada por Luis Ruffato + 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira. Todos pela editora Record. Em 2014, participa junto ao Movimento de Arte Pornô de uma exposição no MAR chamada Josephine Baker e Le Corbusier- Um Caso Transatlântico curadoria de Fernanda Nogueira. Em 2015, fez parte da exposição de fotografia Linhas de Fuga  com o coletivo Singular Plural com curadoria de Mickele Petrucelli.  


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