Diários, por Al Berto


BERTO, Al (Out. 2012). Diários. Porto: Assírio & Alvim. Fev. 2013.

estou finalmente sozinho comigo mesmo, algures, num ponto desconhecido do Universo. uma voz quase estelar perturba, todo o meu corpo treme. são muitas horas passadas com a casa encostada à vidraça. olhando o mar. olhando até que nem mar, nem coisa nenhuma me vem ao olhar.

    o mar vem, então, de dentro de mim, e não se parece nada com aquele que vejo.

são muitas horas sem minutos. são muitas horas sem ninguém, de deserto em deserto, à espera que a noite desça e esconda tudo com seu soluço de sombras. e me esconda a mim, também, dos meus próprios pensamentos. um escuro tão total que ao passar uma mão pela outra não a sinto. o corpo diluído na própria espessura da noite, enfim para descansar. 

é no instante fulgurante em que já não tenho corpo, nem sentimentos, nem desejos, que surgem as palavras, ainda sem forma no papel, ainda sem mentiras. ainda sem significado algum. uma espécie de linguagem musical quase indecifrável.

quantas vezes me sentei de olhos fechados a ouvir Schubert e me lembrei de ti! Quantas vezes o céu [...]


20.1.1985 rua do forte

não há riso naquilo que escrevo: almoço sozinho, ouço Verdi para que o ruído do mundo, lá fora, se apague completamente. são 5 horas da tarde. chove sem cessar. um Bucelas branco seco acompanha-me. é preciso cultivar a solidão, de vez em quando. hoje nada me dói, e ninguém bateu à porta.

Vou terminar o almoço com o perfume das tangerinas nos dedos. Já não há riso no meu dia a dia, e isto nada tem de angustiante ou literário.


encosto a cara à vidraça da imensa janela oceânica e ouço a Callas, a fazer tremer as paredes dos vizinhos. uma ave delicadíssima forma-se no ar inesperadamente surge a visão duma ilha, o canto magnífico duma voz límpida...     


(Mote para o encontro de 15/06/2021) 

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