Bicicletinha, de Bruno Flores
Usando
um cortador de unha, Dudu repartia em quatro o minúsculo papel
verde, leve como confete e que supostamente nos levaria para outra
dimensão. João veio do banheiro fechando a braguilha com o copo de
cerveja entre os dentes, e Dudu pediu bruscamente que ele fechasse a
janela. Qualquer lufada de vento poderia levar embora a fonte da
nossa alegria naquela noite: o famoso bicicletinha, em uma poderosa
edição especial.
----
Cês tão ligados por que o nome “bicicletinha”?
Na
mesma hora a Carol revirou os olhos e se levantou do sofá para fazer
uma caipirinha, como quem já ouvira aquela história inúmeras
vezes. Dudu era assim. Adorava pagar de didático quando tava doidão.
Começou a contar sobre
o químico suíço Dustin Hofmann, o primeiro cara a...
----
Peraí peraí! Dustin Hoffman é um ator americano!
Uma
rápida busca no Google revelou que o nome real do cientista era
Albert Hofmann, o criador do LSD. Havia sintetizado a droga pela
primeira vez em 1938, mas foi cinco anos depois que acidentalmente
absorvera pelos dedos uma pequena quantidade, descobrindo, sem
querer, seus efeitos psicotrópicos.
----
Imagina só irmão... se o cara não tivesse espirrado esse dia no
laboratório, a gente não taria aqui, repartindo o bicicletinha.
Veio
a gargalhada expansiva e maquiavélica do Dudu, feito vilão da
sessão da tarde. Carol voltou com duas cervejas e a jarra de
caipirinha que animou João, mais adepto do destilado.
A
história continuava: em
19 de abril, dias após provar
acidentalmente a droga, Albert Hofmann decidiu por um novo
experimento: ingeriu 250 microgramas do LSD, o que na época
considerou a dose limite,
para explorar mais a fundo seus efeitos. Menos de uma hora depois
sentiu
alterações
súbitas e intensas em sua percepção. Com receio de que tivesse se
envenenado, pediu a seu assistente que o acompanhasse até em casa,
mas o uso de veículos estava proibido por conta da 2ª Guerra
Mundial.
Fizeram,
então, a viagem de bicicleta.
No
trajeto, a onda se apoderou completamente do cientista, alternando
sentimentos de euforia e ansiedade. Num momento, apreciava o vento em
sua face e a liberdade de pedalar por aqueles vastos campos. No
minuto seguinte, se apavorava ao pensar que sua vizinha era na
verdade uma bruxa malévola que lhe preparava algum feitiço terrível
ou que aviões alemães se aproximavam para reduzir seu país a
cinzas.
O
simples percurso de bicicleta atingiu os picos de adrenalina de uma
jornada espacial.
Essa
última parte, claro, foi acrescentada pelo Dudu, ignorando o fato de
que na época ainda nem se sonhava com a exploração do cosmos.
Em
casa, Hofmann recebeu a visita de um médico, que não detectou
nenhuma anomalia física no paciente, a não ser os olhos
extremamente dilatados.
Desde
então, em 19 de abril celebra-se o Dia Mundial da Bicicleta. Hofmann
morreu de causas naturais em 2008, aos 102 anos de idade. Publicou
mais de cem artigos científicos, inclusive um livro onde narra a
experiência de pedalar sob efeitos da poderosa droga lisérgica que
revelara ao mundo e que, com o passar dos anos, vira cair no gosto
popular.
-
Ao nosso patrono, Dustin Hoffman!
Brindamos
com a euforia de vikings antes da batalha. Cada um pegou com o dedo
indicador o seu quartinho do doce, e enfiamos embaixo da língua,
sentindo aquele dissolver anestésico e azedo.
Nosso
destino nessa noite era o Clube Hebraica, em Laranjeiras, onde se
apresentaria a banda californiana de reggae, Groundation, que havia
estourado alguns meses antes. Uma, duas, três cervejas depois e o
organizador anunciava o início do show. Eu e João nos perdemos do
Dudu e da Carol, e conseguimos nos posicionar em frente ao palco. A
música era Freedom
Taking Over,
minha favorita do Groundation, que mesclava reggae, jazz e blues, um
contrabaixo vigoroso misturado à fala elétrica do vocalista
Harrison Stafford.
Aos
poucos, uma onda de calor percorreu meu corpo dos dedos dos pés aos
cabelos. O suor agia como um casulo protetor, refrescando em vez de
incomodar, clareando idéias e percepções, como se a alma ganhasse
a dimensão externa e abrigasse o corpo. Uma experiência cem por
cento introspectiva, que garantia a compreensão exata dos
sentimentos, a liberdade total das sensações.
Coberto
por uma manta verde com símbolos que remetiam à cultura Rastafari,
o vocalista se esgueirava ligeiro pelo palco como um réptil faceiro,
cantando sobre Jah, Zion, o Rei Salomão e a Rainha de Sabá.
Olhei
para o lado e o João encarava a banda com olhos arregalados e um
sorriso largo de coringa, suor pingando de suas sobrancelhas. Não
sorria com os olhos, mas fixamente com os dentes, como se tivesse
dormido com um cabide na boca.
Encontramos
Carol sentada nos ombros do Dudu mesmo com o show já encerrado,
virando uma garrafa de água sobre a cabeça e produzindo uma
cachoeirinha que desaguava em seu namorado.
Saímos
do Hebraica e tomamos o rumo do píer da Lagoa, perto do corte do
Cantagalo, onde acendemos um baseado de Skank enquanto a alvorada
rasgava o negrume da noite. Dudu afirmou ver dezoito diferentes
tonalidades de cor naquele amanhecer. Mas certamente predominava um
laranja rosado, que cruzava o céu como o fogo cuspido por um dragão.
A
maconha reduziu aos poucos a euforia e deu lugar à sonolência. Dudu
argumentou que não poderia me dar carona até minha casa em
Botafogo, pois dali a duas horas teria que estar no estágio.
Como
as ruas estavam desertas, comecei a caminhar, até me deparar com o
veículo perfeito para resolver o meu dilema: as bicicletas
recreativas do Itaú.
Não
pensei duas vezes. Comecei a pedalar, gastando os resquícios do
bicicletinha e ensaiando um papo imaginário com meu camarada Albert
Hofmann.
(conto lido no encontro de 26/06/2018 baseado no trecho de Testo Junkie de Paul Preciado)
Bruno Flores é escritor e profissional de marketing. Publicou o romance Rumah (Editora Multifoco, 2015), sobre um povo neolítico nas ilhas do Pacífico. É fundador da Espaço Livre Marketing Literário.
Comentários
Postar um comentário