Asas de papel, por Carmen Belmont
Asas de papel, por Carmen Belmont
– Chega. Assim já está bom.
– Mas... ainda não terminei e –
– Terminou sim – disse e se levantou da cadeira onde
estivera sentada, penteando, com os dedos, os cabelos ainda úmidos. Parecia um
moleque que acabara de escapar da chuva – pensou, algo divertida, sacudindo gotas
brilhantes sobre a bancada envidraçada. Pagou e ganhou a rua rapidamente, juntando-se
aos passantes da tarde, suavemente tingida por uma paleta outonal de azuis e
amarelos. Caminhava sem pressa, cogitando como seria bom se pudesse cortar os
problemas como se corta um cabelo – só que não era tão simples, não mesmo. Ia
assim, tão distraída, que tomou o caminho oposto ao que planejara; só percebeu o
engano quando a fachada de um casarão imponente de três andares, à entrada de
uma ruela, projetou uma sombra tênue sobre os seus passos.
Mirou a bela construção antiga de tijolos acinzentados,
emoldurada por um pequeno jardim e portões de ferro, ostentando a placa
“Aberto” que informava a sua condição de restaurante. Resolveu entrar. O que
tinha a perder? Nada ficaria pior só porque ela se demoraria um pouco mais. Não
havia ninguém àquela hora, mas ainda assim solicitou se instalar no terraço da
cobertura. Precisava garantir a solidão para refletir consigo mesma, sem
interrupções. Escolheu a mesinha mais ao canto para melhor apreciar a paisagem e
pediu uma taça de vinho branco. Bebeu água e experimentou o vinho com um certo
alívio, antes de o garçom deixá-la a sós com seus pensamentos.
A via era arborizada, com prédios baixos pintados de branco.
Alguns tinham janelas coloridas, outros pequenos balcões de ferro. A alameda de pedras dava em uma praça –
constatou – adivinhando o cenário pelas visíveis copas esverdeadas reunidas
adiante, de onde podia distinguir, ocasionalmente, ruídos abafados de cães,
crianças e pássaros. Crianças brincando na praça, como sempre, como
antigamente, como a criança que ela tinha sido – há quanto tempo? Não muito,
embora a noção de muito ou pouco, para ela, não correspondesse exatamente aos
anos que lhe beijaram o rosto. Parecia ter sido ontem; mas – ela sentia –
parecia também que a menina que brincava de roda e bonecas de papel havia se perdido
nas estradas empoeiradas da lembrança há muitas eras.
Bonecas de papel... aquelas que havia herdado da mãe –
lembrou, fazendo um esforço para recordar os detalhes. Folguedos que foram as primeiras
viagens que fizera para além das fronteiras do seu quintal de menina do
interior, exímia que era em usar a única ferramenta de que dispunha para tanto
– a imaginação. Era um conjunto de oito bonecas, quatro meninas e quatro
meninos de países diferentes, com vestimentas típicas dos lugares de origem. A
mãe escrevera os nomes no verso de cada uma com a linda letra da professora que
seria um dia, e a filha, encantada com o presente, adotou também os nomes
dados.
Conjurou mais uma taça de vinho, enquanto revivia as imagens
na memória. Ktma, a bela indiana com o bindi
entre as sobrancelhas. Erika, a loura suíça de olhos azuis e tranças faceiras,
presas, como dois grandes anéis, nas laterais do rosto. Yuri, a japonesinha amigável
de mãos espalmadas em reverência e cabelos negros com franjinha. Rosa, a
espanhola viçosa de cabelos encaracolados e porte de dançarina.
Os meninos também não ficavam atrás em diversidade e beleza.
Oleg, o esquimó da Groenlândia, de cabelos lisos e olhos alegres – sorriu,
lembrando que a mãe contara que o nome viera da palavra “gelo” ao contrário.
Jay, o escocês de cabelos castanho-avermelhados, olhos verdes e mãos
orgulhosas de gaiteiro na cintura. Stan, o holandês louro de olhar celeste e
cabelos esvoaçantes com o vento nos moinhos. Miguel, o peruano de olhar latino
e forte como seus ancestrais do Titicaca.
A torrente de lembranças inundou sua mente e seu corpo com
um prazer imprevisto que obliterou qualquer mal estar. Esqueceu-se de todas as
amarras e se levantou, indo até a extremidade próxima do terraço. Ah, sim,
agora estou bem, mas poderia estar um tantinho melhor – pensou, já estendendo
as grandes asas, que brilharam sob a luz do entardecer.
(Conto vencedor lido em 09.05.18 (terça-feira) no Clube da Leitura, realizado na Casa Rio)
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