La liberté est blanche, por Gabriel Cerqueira

Eva observava uma vitrine azul em um final de tarde nublado. Carros flutuantes passavam zumbindo baixinho pela rua e ventava de leve. Após alguns minutos ali, envolta pelo azul, ela entrou na loja e saiu com um pacote prateado. Eva era uma garota jovem e bela. Seus cabelos, que iam até os ombros, eram cinzentos como a cidade e o céu daquele dia. Os olhos azul-escuro pareciam poças do mar do norte. Pele branca e corpo esbelto, de curvas sutis.

A volta para casa foi como tantas outras. Os olhares dos homens se punham sobre ela sem cerimônia alguma. Enxergavam através de seus casacos, calça, calcinha, apalpavam-na, despiam-na; alguns até imaginavam penetrá-la, reduzindo-a a um depósito descartável de esperma. Pareciam selvagens com suas expressões febris e doentias. Um homem assobiou, outro disse coisas obscenas. Eva tremeu e fingiu que nada estava acontecendo. 

Ao chegar em casa ela suspirou de alívio. Subiu as escadas e entrou no quarto, trancando a porta. Colocou o pacote prateado em cima da cama e o abriu.

Eva pegou o Esty como se fosse um tesouro. O Esty era composto por uma máscara transparente e dezenas de nanotransmissores; após adequar a máscara no rosto o usuário posicionava os nanotransmissores em locais específicos de seu corpo - assim, parte da atividade cerebral do usuário poderia ser comandada pelo software de Esty para obedecer padrões de sua rotina e deixar o usuário livre para fazer o que quisesse em seu âmago. O livre arbítrio do usuário ainda existia, ele ainda tomava parte das decisões, mas seria o software que executaria as funções.

Para Eva, uma pessoa que não via sentido em existir, Esty seria a última alternativa para continuar vivendo; remédios e terapia não surtiram efeito em Eva, e seus pais haviam instalado nela nanorobôs de verificação de atividade vital após a tentativa de suicídio da filha; ao menor sinal de que estava morrendo sedativos e medicamentos mantenedores de vida eram liberado no organismo de Eva.

- Felicidade - disse ela após realizar a instalação de Esty em seu corpo.

A máscara modelou o rosto de Eva e ela realmente parecia estar feliz.

- Alta autoestima. Bom humor - ela continuou com a configuração - Gentileza. Paz. Paciência. Amor. Atenção. Precaução. Autopreservação. Bondade. Humildade. Medo…
Não se reconheceu ao olhar no espelho. No reflexo ela via uma mulher cheia de vida, por dentro, sentia-se morta.

A manhã seguinte foi leve. A vontade era de ficar na cama, mas Esty seguiu o comando de autopreservação. Eva levantou, tomou banho e fez o desjejum. Se arrumou e foi para a universidade. Sorria, cumprimentava os vizinhos, até mesmo andava sem querer. Foi então que viu Adam na entrada da universidade. Ele era famoso por suas conquistas amorosas e por “desconhecer” a palavra “não”. Há alguns meses agarrara Eva, querendo beijá-la, e levou uma unhada em seu rosto; espalhou o boato de que o ferimento era resultado do sexo selvagem que teve com Eva. A reputação da garota ficara manchada por esse estigma em todos os seus círculos sociais.

E lá estava Adam sorrindo e acenando para Eva. Ela tremeu e se desesperou quando se viu acenando de volta para ele. Andava na direção dele. Adam parecia não acreditar no que via e sorriu maliciosamente.

Não, por favor não. Um erro não”, ela pensava. Esty, que era para ser a salvação, havia se tornado condenação. Ela queria chorar mas o corpo não a obedecia, as lágrimas não caíam e a boca não gritava. Eva estava a um passo de Adam quando seu rosto ficou inteiramente vermelho - sinal de erro fatal em Esty e artifício utilizado para não comprometer a identidade do usuário em uma situação crítica. O sistema não suportara a contrariedade da garota e teve parte de seus arquivos corrompidos.

Foi então que Eva pegou uma caneta que estava em seu bolso e a fincou na lateral do pescoço de Adam. Ele urrou de dor e caiu ao chão. As pessoas que olhavam a cena estavam horrorizadas. Eva pulou em cima de Adam, retirou a caneta e tornou a apunhalá-lo na garganta por diversas vezes. O rosto dela ficou totalmente branco e ela parou. Olhou o corpo morto e o sangue que a encharcava. Eva gritou, um grito seco proveniente do fundo da alma, aterrorizada. Tentou se limpar, mas o sangue se espalhava ainda mais. Ela se debateu no chão e depois ficou estirada ao lado do cadáver em completo estado de choque.

Já na ambulância e amparada por uma enfermeira Eva sentia profunda vergonha, mas nenhuma vergonha poderia ultrapassar seu triunfo, nada poderia lhe tirar a vitória de ter matado o desgraçado.

Não havia mais Esty na cidade após o incidente aparecer no noticiário. Não houvera recall, apenas milhares de pessoas queriam que seus dispositivos dessem erro.

(Conto vencedor do encontro de 27/06/2017)

Gabriel Cerqueira não faz a menor ideia de quem ele é.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz