O Banho, de Raduan Nassar

O BANHO

Debaixo do chuveiro eu deixava suas mãos escorregarem pelo meu corpo, e suas mãos eram inesgotáveis, e corriam perscrutadoras com muita espuma, e elas iam e vinham incansavelmente, e nossos corpos molhados vez e outra se colavam pr’elas me alcançarem as costas num abraço, e eu achava gostoso todo esse movimento dúbio e sinuoso, me provocando súbitos e recônditos solavancos, e vendo que aquelas mãos já me devassavam as regiões mais obscuras — vasculhando inclusive os fiapos que acompanham a emenda mal cosida das virilhas (sopesando sorrateiras a trouxa ensaboada do meu sexo) — eu disse “me lave a cabeça, eu tenho pressa disso”, e então, me tirando do foco da ducha, suas mãos logo penetraram pelos meus cabelos, friccionando com firmeza os dedos, riscando meu couro com as unhas, me raspando a nuca dum jeito que me deixava maluco na medula, mas eu não dizia nada e só ficava sentindo a espuma crescendo fofa lá no alto até que desabasse com espalhafato pela cara, me alfinetando os olhos na descida, me fazendo esfregá-los doidamente com o nó dos dedos, ainda que eu soubesse que eles, ardendo, anunciavam francamente o meu asseio, e não demorou ela me puxou de novo sob a ducha, e seus dedos começaram a tramar a coisa mais gostosa do mundo nos meus cabelos co’a chuva quente que caía em cima, e era então um plaft plaft de espuma grossa e atropelada, se espatifando na cerâmica co’a água que corria ruidosa para o ralo, e ela ria e ria, e eu ali, todo quieto e largado aos seus cuidados, eu sequer mexia um dedo pra que ela cumprisse sozinha esse trabalho, e eu já estava bem enxaguado quando ela, resvalando dos limites da tarefa, deslizou a boca molhada pela minha pele d’água, mas eu, tomando-lhe os freios, fiz de conta que nada perturbava o ritual, e assim que ela fechou o registro me deixei conduzir calado do box para o piso, e, ligado numa ligeira corrente de arrepios, fiquei aguardando até que ela me jogou uma ampla toalha sobre a cabeça, cuidando logo de me enxugar os cabelos, em movimentos tão ágeis e precisos que me agitavam a memória, e com os olhos escondidos vi por instantes, embora pequenos e descalços, seus pés crescerem metidos em chinelões, e senti também suas mãos afiladas se transformarem de repente em mãos rústicas e pesadas, e eram mãos minuciosas que me entravam com os dedos pelas orelhas, me cumulando de afagos, me fazendo cócegas, me fazendo rir baixinho sob a toalha, e era extremamente bom ela se ocupando do meu corpo e me conduzindo enrolado lá pro quarto e me penteando diante do espelho e me passando um pito de cenho fingido e me fazendo pequenas recomendações e me fazendo vestir calça e camisa e me fazendo deitar as costas ali na cama, debruçando-se em seguida pra me fechar os botões, e me fazendo estender meus pesados sapatos no seu regaço pra que ela, dobrando-se cheia de aplicação, pudesse dar o laço, eu só sei que me entregava inteiramente em suas mãos pra que fosse completo o uso que ela fizesse do meu corpo.

Um copo de cólera: Raduan Nassar, São Paulo, Cia das Letras, 1992. p. 21-24.

Raduan Nassar (Pindorama, 27 de novembro de 1935) é um escritor brasileiro galardoado com o Prémio Camões em 2016.
Na adolescência foi para São Paulo com a família onde cursou direito e filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Estreou na literatura no ano de 1975, com o romance Lavoura Arcaica. Em 1978 foi publicada a novela Um Copo de Cólera, que fora escrita em 1970. Em 1997 foi publicada a obra Menina a caminho, reunindo seus contos dos anos 1960 e 1970.
Com apenas três livros publicados é considerado pela crítica como um grande escritor e comparado a nomes consagrados da literatura brasileira, como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Tudo isso graças à extraordinária qualidade de sua linguagem e força poética da sua prosa. Cultuado por um pequeno círculo de leitores, Raduan tornou-se mais conhecido pelo público em geral com as versões cinematográficas de Um copo de cólera e Lavoura Arcaica.
Após a sua estreia na literatura, deixou de escrever em 1984, e mudou-se para seu sítio em sua cidade natal. Atualmente mora na cidade de Buri, no interior de São Paulo. Em 2010, anunciou a doação de uma fazenda de 643 hectares em Buri para a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A fazenda Lagoa do Sino tornou-se sede do quarto campus da UFSCar, inaugurada em março de 2014.
Fonte: Wikipédia


Mote lido por André Salviano para o encontro do dia 2 de maio de 2017



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