Caderno de um ausente, de João Carrascoza (vídeo)
“A tua história, Bia, é o bem mais precioso que tens, ainda
que não venha a ser grandiosa, é a tua história que te dará a medida de estar
no mundo, ela é que exorbita ou reduz o teu valor perante ti mesma e perante a
misteriosa avaliação dos outros ___ não há como te esterilizar do passado (que
veio de mim e de tua mãe e já se aderiu ao teu espírito feito solda), qualquer
história, enquanto se desdobra, é um reino de possibilidades, uma história,
quando a escrevemos, delineia aquilo que poderia ser, nunca o que foi nem o que
é, porque a memória (o passado) só se revigora se a formulamos de novo (no
presente), retocando a luz de sua trama com o grafite das trevas, a tua
história, Bia, há de ser mais uma cicatriz que se somará a outras nas páginas
de rosto da nossa família, e eu te louvo, filha, por aqui estar, fio de água,
no broto de tua nascente, pra cumprir o teu curso, e eu te peço perdão, outra
vez, por não poder te poupar das chagas que te esperam lá na frente, nem ter o
unguento que a amenizará a ausência, seja a minha, seja a de quem um dia te
abandonar, eu não posso te dizer o contrário, que é possível a gente se curar
dos outros – eu, nem de mim, até hoje, me curei – e é justo, embora seja
precoce pra teu entendimento, deixar claro, que é um erro qualquer tentativa de
esconder a verdade, ninguém sabe, filha, se o que bebe é água ou vinho, se só
um deles provou, e, mesmo assim, há quem soube (e continuará sabendo)
transformar um em outro, há quem consiga andar displicente sobre ondas em
fúria, há quem consiga serenar a plateia com relatos desesperados;”
Caderno de um ausente: João
Carrascoza, São Paulo, Cosac Naify, 2014. p. 53-54
João
Anzanello Carrascoza (Cravinhos, interior de São Paulo, 1962) é um escritor e professor
universitário brasileiro.
Estreou-se
com o livro Hotel Solidão (1994).
Publicou vários livros de contos, como Duas
tardes (2002), Espinhos e alfinetes (2010), Amores mínimos (2011), O volume do silêncio (2006, prêmio Jabuti) e Aquela água toda (2012, prêmio
APCA).
Em seu
primeiro romance, Aos 7 e aos 40 (Cosac Naify, 2013), Carrascoza escreveu
que “o presente é feito de todas as ausências”. Em Caderno de um ausente (Cosac
Naify, 2014), essa ideia se materializa de forma contundente, alçada por um
lirismo poucas vezes visto na literatura brasileira.
Fonte: Wikipédia
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