O desejo dos vivos, por José Fontenele
Com
afinco decidi ser santo. Interpelei o padre após a missa sobre qual
escada tomar à santidade e ele sorriu da minha meninine. Disse que
cometia engano por achar que uma lista de tarefas definia a
santificação. Era preciso mais. Era preciso ultrapassar a linha dos
homens, esta ainda invisível aos meus treze anos. Quando perguntei o
que era isso o padre riu e deitou a mão nos meus cabelos ralos
tomando-me inocente com vontades sem solução.
Após
a missa notava a vila unânime em pesares. Todos saíam silenciosos e
mesmo com roupas de domingo não se escutava qualquer elogio. A
Margarida me alcançava enquanto eu seguia para casa e me dizia que
logo cresceríamos o bastante para nos casarmos; ela fez um coração
na praia com os nossos nomes dentro e deixara um traço incompleto no
desenho para que eu entrasse e se fixasse por inteiro naquela
vontade. Eu respondi que não. Buscava ser santo e por isso não a
protegeria na integridade daquele amor. Me interessava outro amor, um
sentimento comunitário que diminuísse o sofrimento daquelas pessoas
condenadas que assomavam à nossa vila. Disse a ela que era preciso
mostrar alguma esperança àquelas pessoas e que se ninguém o fazia
por achar fardo pesado demais aos compromissos adultos, eu acolheria
a tarefa sem fraquejar. Ela me respondeu que se fosse por isso também
queria ser santa, e eu ri. Pus a mão em seus cabelos encaracolados
de sol e disse que ela não sabia o que estava pedindo; que isso de
ser santo não era uma escolha repentina e despreparada. Contei-lhe o
destino dos santificados, contei-lhe das provas no corpo, dos
inimigos que surgem querendo sangue, e finalmente contei-lhe do diabo
a espreitar pelos olhos alheios, do diabo a criar armadilhas para
maltratar o corpo e o espírito dos destinados a santos. Tão logo ia
contar mais, Margarida chorou. Tirou-me por mentiroso, mandrião,
falaciador. Me segurei para não bater nela. Segundos depois disse
que me tratando dessa forma ela também é uma armadilha do inferno.
Ela chorou mais. Entre as lágrimas e soluços não entendi se me
xingava ou me tirava o amor. Respondi que não iria mais a escola,
pois deveres de quase-santos consomem o dia inteiro em rezas e
doações a comunidade. Por fim aconselhei que ela deveria encontrar
outra pessoa que caiba no coração desenhado na areia, e assim ela
se foi.
Não
contei à minha mãe o desejo de ser santo porque queria
surpreendê-la quando conseguisse a santificação. Amanheci a
segunda e esperei o Jerônimo para irmos a escola, mas tão logo ela
me viu com ele tomando a trilha para as aulas da dona Ermecinda,
atalhei por outros cantos e fui ao único posto de saúde da vila. Lá
tratei de contar a dona Lucrécia, a enfermeira sexagenária que nos
atendia, que eu buscava a santidade e por isso dispunha a minha reza
aos casos mais irrecuperáveis da terra. Ela sorriu tonta e por
alguns momentos imaginei que a pouca audição dela dificultaria meu
objetivo ali. Mais tarde Dona Lucrécia desatou conselhos inúteis;
disse que deveria frequentar a aula, que deveria ouvir mais e falar
menos, e que crianças no meio das doenças são atacados pelas
chagas dos outros. Respondi que conhecia os perigos da estrada, mas
que não renegaria minha santidade por conta de simples maldições.
E como ela demorava a me responder, pois não enxergava as palavras
como nós que temos bons ouvidos, chegou um homem velho debilitado de
todo o corpo para quase-morrer, pois morrer eu não o deixaria. A
família trouxe o velho como quem já cortejasse a morte presente; a
filha derramava litros de desespero, dizia que o pai sentia uma dor
incomensurável nas entranhas como se nascessem árvores nos
intestinos. A mulher do velho tinha um terço agarrado às mãos e já
usava um chale negro cobrindo a cabeça. Dona Lucrécia agia como
surda, pois perguntavam-na muitas coisas e ela não respondia nada.
Em vez disso, a nossa única enfermeira maquinalmente abria um leito
do posto e tratava de conferir agulhas e remédios com propósitos
diversos ao quase-morto.
O
corpo do velho afundou de tão magro ao cair na cama; os membros
vinham encarnados como se fossem chupados por animais invisíveis que
não deixavam marcas de dentes. O rosto era toda uma ameixa seca
chupada centenas de vezes. Confesso que me aterrorizei com aquela
debilidade, mas logo encontrei um crucifixo acima da cama e me
reestabeleci. Com Deus e eu ali não era possível que ele morresse.
Peguei o terço presente de minha avó e ajoelhei ao lado do
moribundo. A família do quase-morto então me percebeu e passou a
fazer perguntas. À moda de dona Lucrécia, nada respondi. Procurei a
mão do doente, agarrei-a e passei a rezar mais forte. Pedi aos anjos
e santos que me ajudassem na caminhada divina concedendo um pequeno
milagre: a saúde do quase-morto. Anjos e santos param chacinas,
intercedem na ressureição de moribundos, por que não me deixariam
pelo menos aquele velho vivo? Senti a presença divina na minha
oração e mesmo com os olhos fechados conseguia ver luzes
abrilhantando o corpo do doente. Resolvi levantar as pálpebras e
enxerguei o espírito do velho sorrindo satisfeito, embora morto.
Fraquejei por não o salvar o corpo dele, mas pelo menos garanti a
segurança do espírito na morte. “Morreu? O desgraçado morreu?
Tomara que o capeta se encarregue dele.” Após dizer isso, a mulher
do velho cuspiu no corpo moribundo e saiu da sala.
José Fontenele é Jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Trabalha em uma Agência Literária. Escreve prosas e críticas para alguns sites de Literatura.
Conto Vencedor do encontro de 24/01/2017
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