O triunfo da cor, por Carmen Belmont

O triunfo da cor, por Carmen Belmont

Ele era magro e tinha uma cabeleira ruiva, o que lhe valia mil apelidos na escola. Cabeça de fósforo. Cenourinha. Labareda. Curupira. Diabo-da-tasmânia. Salsicha. Como ninguém jamais levantou o assunto bullying, ficou apenas o registro na memória de algumas brincadeiras bobas de criança, sem maiores traumas. A juba vermelha só chegou a incomodar um pouco porque não podia participar de nenhuma bagunça sem ser pego, pois era sempre o primeiro de quem os inspetores e professores se lembravam. Quem mandou ter uma característica tão facilmente identificável como aquela? Se bem que era calmo – apesar da inquietude interna que o fazia tamborilar em qualquer coisa, de paredes a cadernos – e não costumava se meter em encrencas. Pelo menos não em encrencas desse tipo.

A verdade é que ir à escola não lhe interessava muito, a não ser pela possibilidade de zoar com os amigos nos intervalos das aulas. Passava a maior parte do tempo calado e sonolento, ou batucando em tambores invisíveis, ou moscando na última fila, ou então sonhando com seus mundos faz-de-conta invariavelmente cheios de jovens heróis lutadores, saídos de algum mangá japonês. Claro que isso não ajudava nos exames, então notas baixas e constantes comparecimentos dos pais à escola eram inevitáveis.

A sua falta de interesse parecia exasperar a todos, embora ele não fizesse ideia do porquê, pois vivia muito bem consigo mesmo, obrigado. Tanto conversaram e fuçaram o seu suposto “problema” que concluíram que ele tinha um tal de transtorno de deficit de atenção, que ele tratou logo de chamar de “meu DDA-zismo”, a fim de poder assumir de vez o personagem. Daí se sucedeu a peregrinação aos médicos e psicólogos e o calvário dos remédios que não adiantavam nada, só serviam para deixá-lo atordoado e preso a um corpo indolente, como se não fosse ele que estivesse ali.

Como não houve fórmula ou tratamento que resolvesse, o jeito foi ir em frente assim mesmo, de cara limpa, aos trancos. Ele adolescia normalmente em meio aos seus pares, que nem eram tão diferentes assim, já que cada um tinha a sua própria inadequação para lidar. Aprendeu a tocar bateria e a gostar de rock ‘n’ roll e de videogames. Arte, só se fosse música agitada ou cinema, não tinha paciência para livros ou pinturas. Filmes e videoclipes eram sempre bem-vindos, conteúdo digital da Internet também. O celular tornou-se um item tão indispensável quanto os poucos amigos inseparáveis.

Naquela tarde, a turma iria sair para visitar uma exposição de pinturas. Ele gostava de atividades externas, afinal eram bem mais divertidas do que as de sala de aula. Continuava sendo bom, apesar da lembrança nada agradável daquele passeio a um centro de recreação juvenil, uma espécie de sítio localizado nos arredores da cidade, onde ele tinha sofrido uma repentina crise de asma. Ainda bem que um dos pais acompanhantes era médico e o socorreu. No final, depois do susto, ficou tudo tranquilo. Bem, mas o que poderia acontecer agora? O lugar era na cidade mesmo, e, depois, já fazia tempo que as crises não apareciam, vai ver tinham sumido de vez.

A exposição trazia quadros de dois famosos museus europeus, apresentando artistas chamados de pós-impressionistas que, conforme a explicação dada aos estudantes, revolucionaram a forma de pintar por meio do triunfo da cor. Ele não entendeu bulhufas: ué, mas todo pintor não usa cores? Por que para aqueles ali as cores eram mais valorizadas do que para os outros? 

Desistiu de tentar acompanhar aquele blá-blá-blá sem sentido algum para ele e observou a primeira tela em frente da qual estavam reunidos, em um espaço isolado: flores meio amarelas em um vaso de cobre sobre um fundo azul. Era bonita, mas ele não ficou assim tão impressionado; até achou as plantas meio esquisitas, talvez porque parecessem vivas através da explosão de cores ou algo assim – pelo menos foi o que ouviu vagamente a professora dizer. 

O grupo se moveu adiante para um salão maior e com mais quadros. Ele os seguiu sem pressa, bem lá atrás. De repente, sem saber por que, deu vontade de ver novamente aquelas estranhas flores que pareciam ter pequenos tentáculos, por isso decidiu voltar.

Foi então que a viu. Ela estava lá sozinha, parada. Cabelos negros amarrados num rabo-de-cavalo, celular nas mãos sobre o peito, contemplando a pintura, como se estivesse em transe. Ele não se atreveu a chegar mais perto; apenas esperou.

Quando finalmente ela desviou o olhar e pousou os marejados olhos de um azul translúcido nos dele, aconteceu:

(Dois pontos)



(Conto vencedor lido em 01.11.16 (terça-feira) no Clube da Leitura, realizado na Casa Rio)

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Fascinada pelos ecos da linguagem escrita, Carmen Belmont lê e escreve desde que se entende por gente; tudo o mais é adendo. "A palavra/ alva/ alvará da imaginação". (Imagem: @cdbelmont in PicsArt)







Comentários

  1. Belo texto....linguagem clara, expressando muita sensibilidade....a sensibilidade da COR que triunfou.

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    3. Muito obrigada pelas palavras de incentivo! Fico feliz que tenha gostado, felicidades para você!

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