Colo de Mãe, por Beatriz Moreira Lima

Quando puseram o bebê em seus braços, sentiu um misto de alívio e pânico. Finalmente, aquela criatura tinha saído de dentro dela; aquele alienígena que se instalara, contra a sua vontade, no seu ventre, fora expulso. Foram horas de um sofrimento excruciante, mas valera a pena. Só que agora o ser sanguinolento estava sobre seu peito e a plateia parecia esperar uma demonstração de amor materno. O tal amor incondicional. Não sentiu nada, apenas um pouco de repulsa por causa do sangue que ainda envolvia o recém-nascido. Chorou. Primeiro, timidamente; depois, aos soluços. A enfermeira tirou o bebê de seu colo, com ar de reprovação. Aleluia! Agora precisava planejar a sua fuga. 
Lucienny fugiu de madrugada. Sua mãe dormia em uma cadeira ao lado de sua cama, na enfermaria da maternidade. Nos outros leitos, três mulheres também dormiam, enquanto uma quarta gemia sem parar. Encontrou com facilidade suas roupas na sacola pendurada ao pé da cama. Foi um pouco mais difícil pegar o dinheiro da mãe. A coroa dormia agarrada com a bolsa. Mania de pobre... Por sorte, tinha o sono pesado e, com cuidado, conseguiu abrir um pouco o fecho éclair e enfiar a mão para puxar a carteira. Não havia grandes coisas, como era de se esperar, mas dava pra partida. 
No corredor, apesar da hora, o trânsito era intenso. Assim mesmo, não chamou a atenção de ninguém. Estavam todos muito absortos em seus afazeres e problemas. Na rua, ainda escura, o movimento já era grande. Pessoas, que mais pareciam zumbis, se deslocavam para o trabalho. Era preciso garantir o sustento da família, pensou. Apressou o passo e entrou no primeiro ônibus. Sentou-se no banco atrás do motorista e caiu dormindo. 
Quando acordou, no ponto final, o sol já ardia forte na manhã de dezembro. Demorou um pouco para se localizar no tempo e no espaço. Precisava desvencilhar-se da senhora que a acordara e que parecia pretender acompanhá-la. Estava bem, garantiu-lhe. Ótima! 
Sentiu o cheiro do mar. Estava entre as praias de Copacabana e Ipanema. Caminhou para o Arpoador. Sentia-se leve, quase ausente. Atravessou a faixa de areia e foi molhar os pés na água. Uma onda mais forte molhou seu vestido curto. Percebeu o sangue que escorria por entre suas pernas. Lembrou-se do bebê. Seu filho. Não parecia real. Não era mãe de ninguém. Mãe, era aquela que tinha ficado dormindo ao lado de seu leito no hospital. Imaginou o seu despertar. O desespero ao constatar a ausência da filha. 
De repente, uma fisgada no baixo ventre. O sangue manchava a areia. O sol batia forte na sua cabeça, de onde os pensamentos pareciam escapar, levados pelas ondas. Quando percebeu que estava tonta, que suas pernas fraquejavam, não teve tempo de sentar-se. Apenas caiu. Viu as nuvens no céu azul, sentiu a água do mar no seu corpo, teve saudades de sua mãe. Encolheu-se e abraçou as pernas. Dormiu, na esperança de acordar no seu colo.


Conto vencedor do encontro de 22/11/2016

Beatriz Moreira Lima nasceu em 1970, é funcionária pública, mas sempre gostou de escrever. Teve um filho em 1998, publicou um livro em 2008 (“Tempos Férteis”, editora 7 Letras) e até 2018 pretende plantar uma árvore para completar a sua minibiografia. Enquanto isso, frequenta o Clube da Leitura


Comentários

  1. Um espetáculo de conto, inusitado, super bem escrito e engraçado.
    Deborah Geller

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz