O banheiro dos meninos

O banheiro dos meninos, por Morena Madureira


Isso aconteceu no ano passado, mas parece que faz um tempão, porque depois que aconteceu foi tanta coisa que não dá nem pra contar com uma mão só. Tem que usar as duas. Na verdade tem que usar os dedos do pé também e nem assim dá pra contar tudo. Tem que pegar uns dedos emprestados.

Antes de acontecer eu tava lá, na minha, no começo do quinto ano. Eu era do 5o B. Aquele da sala no final do corredor, em frente ao banheiro dos meninos. Eu sentava todo dia na cadeira da segunda fileira encostada na parede, de frente pra porta. Atrás do Zeca e na frente do Felipe Silveira. Todo dia eu sentava lá.

Como na nossa escola não tem ar condicionado e os ventiladores são umas geringonças velhas e barulhentas, que ficam rangendo a aula toda, a professora deixava sempre a porta aberta, e eu acabei pegando mania de ficar olhando o entra e sai do banheiro dos meninos.

Eu ficava olhando mais quando a aula tava chata, o que acontecia todo dia, porque todas as aulas são chatas, eu só gosto mesmo é de Educação Física e um pouquinho de Ciências, então dá pra dizer que eu ficava olhando toda hora pro banheiro dos meninos. Toda mesmo.

Eu ficava um tempão vendo o que acontecia lá. Via quem entrava e quem saía, olhava as caras dos meninos e ficava reparando quem demorava mais, em que série cada um tava, ficava pensando se tinham lavado a mão, ficava vendo quem era feio, quem era bonito, quem eu queria ser amigo, e sabe, comecei a ficar muito acostumado mesmo a fazer aquilo.

Na verdade eu já fazia isso antes, desde o quarto ano, porque aquela já era minha sala. É, no quarto eu já tava com essa mania. Mas pra falar a verdade eu nem tinha percebido que eu gostava tanto assim de olhar os meninos até quando o Pedro entrou na escola. E isso que foi no começo do quinto ano.

Ele tava no sexto, era mais velho que eu. E até ele chegar no escola, quando eu ficava olhando os meninos ninguém me olhava de volta. Acho que ninguém nem percebia que eu tava olhando. Mas o Pedro percebeu. E eu vi que tinha aquele menino, que eu ainda nem sabia que chamava Pedro, porque ele não era da minha série e eu nunca tinha visto ele na escola, que toda a vez que ia no banheiro quando voltava ficava olhando bem pra mim, me encarando.

No começo achei bem estranho, fiquei com um pouco de medo. Achei que ele queria me bater. O Pedro era mais velho, e os mais velhos só olham pra gente quando querem bater, ou sacanear com a nossa cara. Aí eu sempre desviava o olhar quando via que era ele saindo.

Mas a vontade de olhar foi ficando mais forte que meu medo, aí eu meio que parei de desviar. Eu olhava ele de volta. E foi ficando meio estranho, porque toda vez que eu via ele me dava um frio na barriga, eu ficava sei lá... empolgado. Ficava esperando ele ir no banheiro todo dia.
E aí comecei a fazer isso na hora do recreio também. Como eu disse ele era novo na escola, e começou a jogar bola na quadra na hora do recreio, com os meninos da sala dele. Eu não tinha muito amigo fora da minha sala, e meus amigos eram meio nerds, eles nem saíam da sala na hora do recreio, ficavam jogando RPG. Aí eu tava com aquela vontade de ver mais o Pedro e comecei a ficar assistindo ele jogar futebol no recreio.

Logo no primeiro dia ele já percebeu que eu tava lá. Ele jogava muito bem, era o melhor sempre. Driblava os meninos, corria mais que todos juntos, fazia vários gols. E sempre quando ele fazia gol ele olhava pra mim, me via sentado lá na arquibancada. E minha barriga sempre doía nessas horas.

Aí um tempinho depois que eu comecei a assistir ele, não lembro bem quando foi, acho que era perto do fim do segundo bimestre, lembro que era perto da semana das provas, foi aí que aconteceu tudo. Foi aí que aconteceu essa coisa que fico tentando esquecer, mas que não consigo, sabe? Que quando fecho o olho vejo tudo de novo. É como se eu tivesse no cinema, sabe? Vejo tudo. Tudinho.

Era hora do recreio. Eu tinha assistido o Pedro jogando e fiquei com vontade de ir no banheiro. Quando entrei no banheiro, vi que tinha uns meninos lá, e entrei em uma das cabines. Fiz xixi normal e quando abri a porta pra sair, dei de cara com o Pedro. Minha barriga doeu, meu coração disparou e antes que pudesse piscar ele me empurrou pra dentro da cabine e fechou a porta.

Aí ele começou a passar a mão em mim, a passar a mão no meu, no meu... no meu peru. Eu fiquei parado. Eu não sabia o que era pra fazer, não sabia de nada. Fiquei lá quieto, e ele lá mexendo em mim. Nem sei quanto tempo passou porque eu tava muito assustado, não conseguia me mexer, só sei que de repente uns meninos subiram pela porta e colocaram a cabeça pra dentro da cabine que a gente tava, e viram o que tava acontecendo.

Eram uns moleques mais velhos que nós dois, do sétimo, oitavo ano. Uns meninos que eu nunca tinha falado antes, mas que a escola toda sabia que eram os que mais gostavam de briga, de sacanear geral, sabe? Tinha uns quatro. E eles viram tudo e começaram a gritar, a chamar a gente bicha, e arrombaram a porta da cabine que a gente tava e começaram a bater em mim e no Pedro.

Como era hora do recreio, não tinha nenhum adulto por perto, porque a sala é no final do corredor e os professores tavam todos lá na sala dos professores, lá em cima. Os inspetores tavam lá na quadra. Ninguém veio ajudar. Os meninos ainda fecharam a porta e me falaram que deixaram um tomando conta do lado de fora, pra ninguém entrar.

Bateram muito em mim e no Pedro. Muito mesmo. Não só com a mão, mas com uma vassoura e um rodo que a faxineira tinha deixado lá. Quebraram dois dentes meus, quebrei um braço e uma perna também. Uma hora eu não consegui nem mais ver nada de tanto soco no olho. Meu nariz era só sangue. Até que apaguei.



Conto vencedor do encontro de 07/06/2016

Morena Madureira é paulistana, jornalista e inventora de histórias


Comentários

  1. A delicadeza passo a passo na auto-descoberta e a surpresa da brutalidade. O conto de Morena Madureira, sensibiliza o leitor para o entendimento da amplitude do desejo e a rejeição daqueles que obturados pela ideologia da negação destroem o que não sabem construir.

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