Nine out of ten
Nove em cada dez estrelas de
cinema me fazem chorar, eu estou vivo.
Pairo como um quase nada sobre
uma terça-feira emagrecida, reúno meus pedacinhos desconectados, as
terças-feiras parecem mesmo ter esse direito de ser sempre chuvosas e nubladas.
Um dia frio é bom para comer um
croissant.
O primeiro golpe lhe foi
desferido na cabeça com um alicate, como uma coronhada. O sangue verteu, verteu
e verteu e, antes que se pudesse dizê-lo morto, os olhos escuros e pequeninos
se dilataram, e o corpo caiu no chão, tombado como um prédio histórico.
O segundo golpe foi uma flecha
que, atirada por um índio que vivia às margens do Tapajós, acertara-lhe em
cheio a cara, e o sangue escorria pelas bochechas aos borbotões. Que não devia
era mexer com os índios, a lição que sua mãe lhe dera.
O terceiro golpe veio pelos
cavalos esbaforidos que levantavam a poeira da terra por entre os trotes, mas
apesar das ferraduras, quatro por animal, não se tratava de um golpe de sorte:
era coice e pisoteio.
É importante palitar os dentes
após cada uma das refeições, especialmente se não houver um fio dental por
perto.
Triste Bahia, ó quão
dessemelhante estás e estou do nosso antigo estado de espírito. Pobre te vejo a
ti, a mim, a ele, a ela, aos artistas, à vida, pobre te vejo a todos, e em
todos.
Quero a luz dos olhos meus à luz
dos golpes teus, só pra te massacrar.
Meu amor, teu corpo ao meu, nesse
meu corpo ateu, vou te desmascarar.
E tendo José de Arimateia pedido
o corpo de Jesus Cristo a Pôncio Pilatos, e vendo que o corpo estava morto e
sangrava por todos os poros, e sabendo que os golpes que lhe foram desferidos
eram injustos, decidiu a dar a ao escolhido um enterro digno.
Calado pelo dever moral, o homem
que diz vou, não vai. Coitado do homem que cai no canto de Ossanha, traidor.
A traição não é um pecado
capital, nem nos dez mandamentos bíblicos contidos no livro de Êxodo, tampouco
na versão católica dos dez mandamentos. O adultério é pecado, a traição jamais.
O roubo é pecado, a traição jamais. Roubar é pecado, temer jamais.
Aquele que trai, conspira e tece
as teias de urdiduras corrosivas e diz vou: não vai; se é homem que diz ‘Sou’,
não é.
Cada um dos índios sente a dor do
golpe e contra-ataca, de forma coletiva, em flechadas disparadas contra os
canhões.
Davi contra Golias é também a
flecha contra o arcabuz, a nudez contra o excesso de roupa, as pessoas contra a
cavalaria, é desviar-se do coice do golpe do cavalo do bandido com um golpe, um
golpe de capoeira.
O golpe de capoeira é gente
preta, gente branca, gente índia na malemolência de quem não quer mais saber de
Pôncio Pilatos.
É Oxóssi em seu cavalo, com seu
chapéu de banda.
É a volta do cipó de aroeira no
lombo de quem mandou dar.
Um dia frio é bom para comer um
croissant, como são lindos, como são lindos os burgueses, e os japoneses, mas
tudo é muito mais.
Caetano Veloso gravou o álbum
Transa em 1971, passando uma temporada golpeado no frio londrino enquanto
pensava no seu triste Recôncavo.
Não poderia sequer imaginar que
mais de trinta anos depois estaria se preparando para estacionar um carro no
Leblon.
Passa um filme em Portobello Road
em setembro de 1971. O sangue, aos borbotões, salta das bochechas de Jesus
Cristo enquanto José de Arimateia tenta em vão argumentar, debruçado sobre o
peso de Jesus Cristo, ora morto, tombado como um álbum histórico.
Caetano Veloso palita os dentes
após comer um croissant. Está sentado na terceira cadeira da quinta fileira
assistindo ao filme de cujo nome ninguém mais se lembra. É o décimo filme a que
assiste desde que chegou, mas Caetano, manteiga derretida em todos os nove
anteriores, por algum motivo, não chora.
Se nove em cada dez estrelas de
cinema o fazem chorar, e se passou nove sessões chorando no mesmo cinema de
Portobello Road, e se, noves fora, é ainda preciso saber ser forte, pra quê, ó
meu deus, pra que rimar amor e dor?
Em frente, amigos, em frente: acabou
chorare.
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Este conto foi escrito para o Clube da Leitura de 07/06/2016, data em que completou nove anos de existência.
Igor Dias, 29 anos, é carioca, engenheiro e escritor. É autor dos livros "Dinamarca" (contos, 2015) e "Além dos sonetos breves" (poesia, 2012)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirConto bastante interessante, a forma impressiona. Senti falta de uma narrativa nítida. Abraço!
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