Mote do encontro (24/ 05/ 16)


Mote lido por Morena Madureira


Tanto faz





Saímos, eu e o Chico, do fundo da terra para a noite chuvosa do boulevard du Montparnasse. Entramos correndo no café da esquina, encostamos a barriga no balcão.
-          Dois demis – comanda Chico – pedindo chopes ao garçon.
-          O meu escuro, s’il vous plait – acrescento. O barman não me dá pelota, absorto em seu tédio profissional. Mas acaba trazendo um claro e outro escuro, como pedimos. Afundamos juntos os narizes na espuma.
-          Você acha que passou por paquera barata o convite que eu fiz pra Pamella? – começa Chico, paranoico de carteirinha.
-          Ué? Por quê?
-          Sei lá... essa mulherada aqui da Europa é diferente. Tudo feminista, bi, trissexual, todas com mil giletes na língua. Elas têm ódio à paquera. Consideram uma violência, um crime.  Ainda vão conseguir passar um alguma lei proibindo a paquera, o flerte discreto e até o olhar de esguelha, você vai ver. Passar por uma gostosa na calçada e dar aquela viradinha pra filar a mina de ré vai dar prisão perpétua. Se assobiar, é guilhotina na certa. Escreva o que eu digo. Já ouvi uma francesa, professora de filosofia, defendendo isso na casa da Juliá.
-          Porra, mas nem foi paquera, bicho. Você já conhecia a guria, coisa mais normal do mundo convidar ela prum chopinho. Você não disse “Chupa aqui o meu cacete, tesão”, nem nada do tipo. Foi tudo delicado, na moral. Quê que tem o feminismo a ver com isso?
-          Também acho. Tem nada a ver. A gente vem de uma ditadura militar, porra, não pode vir pra cá pra viver essa paranoia feminista. Chega a polícia, a classe média, o Dops, o Exército, a CIA, a KGB, os mísseis nucleares, a minha asma, o seu fígado podre... Tô começando a achar que o feminismo é um novo tipo de cristianismo fundamentalista, cara. A gente acaba se culpabilizando só por desejar uma mulher.
-          Como é que as feministas acham que a humanidade vai se reproduzir se cortarem o nosso barato? Ou, pior, nosso pai, como muitas gostariam de fazer – digo eu. – Capaz que elas formem tropas de assalto pra roubar espermatozoides nas ruas, com algum aparelhinho de sucção ultrarrápida. Eu até acho que/
-          Tô sacando cada vez mais o lance daquele personagem do Win Wanders – me corta o Chico, que mal ouve o que eu digo, galopando em pista própria, como de hábito. – Como é que ele chama mesmo?
-          De que filme do Wanders? A gente viu vários.
-          Aquele que trabalha em todos, ou quase.
-          O Rüdigler Vogler?
-          Isso, o Vogler. Ele sempre faz o mesmo papel, já reparou? Intelectual cool, meio deprimidão, mas com swing. Maneiro. Nunca mostra fissura por mulher nenhuma. Calado. Na dele. Não fala pelos cotovelos que nem a gente no Brasil, pra dominar os homens e encantar as mulheres. Dá um rolê nas fálicas e nas feministas, ao mesmo tempo. Sabe chegar numa mulher, aborda mas não transborda. Não compete com os amigos.
-          Tudo bem. Mas também não vamos cair no teatro da indiferença diante do tesão, né? A gente lá-bas é mais esporrante mesmo, mais safado, mais... sei lá, primitivo, no melhor e no pior sentido da palavra.
-          Claro, bicho, tô sabendo. Mas nos filmes do Wanders não se trata de indiferença fabricada. O lance ali é que o carinha desmonta a representação do macho diante da fêmea. É o fim do teatro fálico do conquistador. Não tem o culto do sucesso. O sucesso é nazismo, a barbárie. O Wanders sacou o bode do Casanova: o cara que fica full-time de pau duro, mas não goza, não perde a cabeça. A gente é assim no Brasil: tudo um bando de nego fissurado, priápico, tenso. E não tem nada de primitivo, não. A sedução vira espetáculo, ninguém fica relax, ninguém solta seus instintos, seus peidos, numa boa. Todo mundo de cu travado. Daí, quando o cara trepa pela primeira vez com uma mulher, acontece o quê? Ou nego brocha, ou fica de pescoço duro por uma semana, ou tem ejaculação precoce, ou esporra mas não goza, essas merdas. É o velho mito da performance, bicho. Um horror, um horror.



MORAES, Reinaldo. Tanto faz & Abacaxi. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.





Reinaldo Moraes nasceu em São Paulo, em 1950. Estreou com Tanto faz (1981) e depois Abacaxi (1985) - reeditados em 2011 num volume único, pelo selo Má Companhia. Passou dezessete anos sem publicar ficção, até lançar o romance juvenil A órbita dos caracóis (2003), os contos de Umidade (2005), a história infantil Barata! (2007) e o romance Pornopopéia (2009, Objetiva). Escritor, roteirista e tradutor paulistano faz de suas histórias, aparentemente simples, um belo trabalho com a linguagem. A sexualidade está impregnada em cada linha de seus livros, como numa busca incessante de entendimento do próprio desejo. Humor, ironia com eco beatnik, "culto e grosso", como já foi definido à literatura.

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