Mote do encontro (07/ 06/ 16)
Mote lido por
Daniel Russell Ribas
Morangos mofados
Terça-feira gorda
(trecho)
Brilhávamos os dois, nos olhando sobre a areia. Te conheço
de algum lugar, cara, ele disse, mas acho que é da minha cabeça mesmo. Não tem importância,
eu falei. Ele falou não fale, depois me abraçou forte. Bem de perto, olhei a
cara dele, que olhada assim não era bonita nem feia: de poros e pelos, uma cara
de verdade olhando bem de perto a cara de verdade que era a minha. A língua
dele lambeu meu pescoço, minha língua entrou na orelha dele, depois se
misturaram molhadas. Feito dois figos maduros apertados um contra o outro, as
sementes vermelhas chocando-se com um ruído de dente contra dente.
Tiramos as roupas um do outro, depois rolamos na
areia. Não vou perguntar teu nome, nem tua idade, teu telefone teu signo ou
endereço, ele disse. O mamilo duro dele na minha boca, a cabeça dura do meu pau
dentro da mão dele. O que você mentir eu acredito, eu disse, que nem marcha
antiga de Carnaval. A gente foi rolando até onde as ondas quebravam para que a
água lavasse e levasse o suor e a areia e a purpurina dos nossos corpos. A gente
se apertou um contra o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos
completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do
outro. Tão simples, tão clássico. A gente se afastou um pouco, só para ver
melhor como eram bonitos nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do
outro, iluminados pela fosforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é
um bicho que brilha quando faz amor.
E brilhamos.
Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei,
estendendo o braço. Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez
com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-ai,
gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito abertos e
sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada afundando no
meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela
mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela
areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos.
Fechando os olhos, então, como um filme contra as
pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro, o corpo suado
dele, sambando, vindo em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete
de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito
maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos.
ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 12ª
edição, 2015.
Caio Fernando Abreu nasceu no Rio Grande do Sul em
1948. Foi jornalista, dramaturgo e escritor. Aos 19 anos, publicou o romance “Limite
branco”. Lançou 11 livros, foi premiado duas vezes com o Jabuti da Câmara Brasileira
do Livro (1984 e 1989) e seus textos foram traduzidos em várias línguas. Homossexual
assumido, foi perseguido pela ditadura.
Nos anos 1970, exilou-se na Europa. Os contos de Morangos mofados,
de 1982, ocuparam um lugar cativo na cabeceira daquela geração. Morreu em 1996.
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