A porta que range - Daniel Russell Ribas
A porta que range
É
minha última noite. Estou cansado disso tudo. Há quanto tempo faço isso? Quase
nove anos? Tempo demais. Estou sentado em um semicírculo em uma livraria à
espera do meu alvo. Enquanto aguardo, leio. A leitura é um hábito que aprecio
em minha existência solitária. Um homem que lê é alguém que capaz de aprender
muito sobre si mesmo e os outros. Além do mais, ajuda a manter a concentração,
que é uma característica essencial na linha de trabalho. O problema é esta
maldita porta. Toda vez que alguém entra ou sai, a porta range. Isto atrapalha
minha leitura e, por consequência, me distrai do que devo fazer.
Você
provavelmente pergunta o que eu faço, afinal. Sou um matador de aluguel. Não um
desses que você encontra em bares de estrada com um palito mastigado no canto
da boca e uma pistola enfiada na calça. Nunca entendi como esses caras evitam
estourar os próprios bagos, mas deixa pra lá. Desculpe por este desvio na
narrativa. Alguém acabou de sair da loja e a porta rangeu! Enfim, mato gente há
quase nove anos. Prefiro tocaia. A melhor forma de fazer qualquer coisa é com
tempo e foco, meu pai me ensinou. Matar para mim é basicamente isso. É fácil
dar um tiro em alguém no meio da rua. Mas saber que o sujeito não vai levantar
ou não ser preso é outra história. Não dou bobeira, sou um profissional que...
AH! A MALDITA PORTA DE NOVO! ALGUÉM ENTROU!
Caralho,
onde tava? Tocaia, claro! Sigo o alvo por algum tempo, nunca mais que uma
semana. Fico por perto, mas sem dar pinta. Vou nos bares que ele vai, pego o
mesmo ônibus, fico perto da casa onde mora... Em poucos dias, sei sua rotina.
Em seguida, sumo por um dia. Como já sei como ele pensa e por onde se
movimenta, é só escolher o local certo, a arma apropriada e fazer o serviço. Às
vezes, por conveniência ou outro motivo você tem vontade de mandar o cara pro
outro lado da terra logo de imediato. Mas não pode fazer, porque é preciso
tempo e foco... Eu já comentei sobre tempo e foco?... Mil perdões. Um cliente entrou na loja. É o
que barulho que a porta faz realmente mexe com meus nervos! Será que ninguém
tem óleo por aqui?
Voltando
ao assunto, nesse tempo todo acabei com a luz nos olhos de muita gente. Sempre
com uma eficácia e sutileza. Jamais fui parado por policial ou preso ou preciso
lidar com vingança. Tive um colega que se deu mal porque deu bobeira, o irmão
do alvo tava armado e caiu junto. Mas completou o serviço. Um bom profissional
morre em serviço, mas termina. Na minha época de maior demanda, eliminei 15 num
mês.
Após
o primeiro ano, percebi que ainda ficava um pouco impaciente antes de cada
matança. Não era nervosismo, mas o fato é uma adrenalina rola nas veias, o que
pode lhe desconcentrar. Para matar, você precisa ser um monge de tão calmo.
Calhou que o primeiro alvo naquele era um escritor que... DE NOVO ESTA PORTA?
CARALHO! QUE TROÇO CHATO! NÃO PARA DE RANGER!
Tá,
matei a porra do escritor e ele tinha um livro na mão. Levei o livro, a única
vez que peguei uma lembrança de finado. Se chamava “Feliz ano novo”, de Rubem
Fonseca. Li o negócio, me diverti horrores. Gosto de leitura leve, pra dar
risada. A vida é muita tensa, já. E com este calor...
Um
dia, fui finalizar mais um trabalhinho e tava um livro no bolso da calça. O
sujeito entrou num puteiro. Como o sujeito provavelmente levaria talvez meia
hora, e até acho justo deixar o cara ter um último momento feliz nesta
dimensão, saquei o livro da mão e fiquei lendo. Era “O estrangeiro”, do Camus.
Gostei muito do livro, mas não entendi o do cara ficar todo abalado porque
matou. Tem gente que preciso comer ainda muito feijão com arroz para ganhar
substância! Meu pai, por exemplo, era um bucho. O cabra não fazia nada... AH,
PUTA QUE PARIU! A PORTA! DESTA VEZ NÃO RANGEU. VI ALGUÉM INDO EM DIREÇÃO E
PENSEI “VAI RANGER, VAI RANGER.”
Bom,
enquanto lia, me vi tão tomado pela leitura que, de uma forma estranha, deixou
minha mente num estado de clareza total. Não ouvia carros, pedestres ou
qualquer coisa que me deixasse apreensivo.
Quando o sujeito saiu, foi como se tivesse sido carregado pelo vento.
Nada ficou entre nós. Me sentia frio feito ar condicionado de shopping. Andei
com tranquilidade por mais algum tempo, ele entrou numa rua deserta, Pá! na
cabeça e segui meu rumo. Foi ótimo.
Repeti
a estratégia e sempre deu certo. A leitura, além de prazerosa, me bota num
transe que preciso estar para executar a tarefa sem falhas. Já matei um cara
num ensaio de escola de samba, uma vez. Para não chamar atenção, me escondi no
banheiro para ler. Era “A hora da estrela”, da Clarice Lispector. Quando o alvo
sentou na privada ao lado, mandei a hora dele logo em seguida. Terminei de ler
o livro no ônibus de volta pra casa.
Agora,
guardei dinheiro o bastante. Estou velho e cansado. Quero aproveitar meus
últimos anos lendo na minha casinha nova, sem ninguém pra encher o saco... QUE
SACO ESTA PORTA. Ô, GAROTO DO BALCÃO, NÃO TEM NINGUÉM PRA CONSERTAR ESSA PORRA,
NÃO?
Não
deixa de ser irônico que meu último alvo é num clube de leitura. Aparentemente,
fez algo que alguém não gostou e ganhou uma passagem pra encontrar o criador
por isso. Em geral, a maioria se vai por isso. O tal clube ia começar num
horário, mas espero aqui já tem mais de meia hora? Será que é sempre assim? Tá
quase vazio. Também com este barulho. Parece unha em quadro negro. Sempre
detestei isso.
Volto-me
ao livro. É mistério, chama-se “Suicidas”. Estou quase no final. Quero saber o
motivo do crime. Com uma fome quase infantil, traço as páginas que me separam
de meu destino. De repente, o horror. O horror absoluto. A MALDITA PORTA NÃO
PARA DE ABRIR E FECHAR E RANGER!!! Os frequentadores devem estar chegando
juntos, porque as pessoas não param de entrar e sair e a porta faz este som dos
infernos!! Como alguém em sã consciência faz um clube de leitura com este
barulho?!?
É
demais. Dentre esta gente, avisto o alvo. Não penso. Dou um pitoco no meio da
testa, três na porta e vou comer um pastel no Pavão Azul em frente a delegacia.
Se vou fechar uma porta em minha vida, que seja com barulho.
Conto escrito para
o encontro de 27/01/2015
Daniel Russell Ribas é membro do “Clube da Leitura” (http://clubedaleiturarj.blogspot.com.br),
que organiza evento quinzenal. Escreve no blogue “Entre a rua e o meio fio” (http://multiconto.blogspot.com.br/), em
parceria com o poeta Henrique Santos. Colabora como resenhista para o site “Boletim
Leituras”. Mantém o blogue “Poema Diário” (http://pordiaumpoema.blogspot.com.br/),
em que publica poesias de autores diferentes; atualmente em animação suspensa. Organizou
as coletâneas “Para Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A polêmica vida
do amor” e “É assim que o mundo acaba”, ambos em parceira com Flávia Iriarte e
publicados pela Oito e meio. Participou como autor dos livros “Clube da Leitura:
modo de usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1” (publicação independente), “Clube da
Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto G” (Multifoco), “Caneta, Lente &
Pincel” (Ed. Flaneur), “Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro” e “Encontros
na Estação” (Oito e meio).
cara... eu pensei q tu tava brincando, mas não: tu foi lá e pow! matou o pastel - triste.
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