Mote do encontro 10/02/15
Texto lido por Márcio Couto
Graça infinita
Se, em virtude de
caridade ou circunstância de desespero, você por acaso vier a passar algum
tempo numa instituição pra recuperação de abuso de Substâncias, adquirirá todo
um novo repertório de fatos exóticos.
Descobrirá por exemplo
que as pessoas viciadas numa Substância, e que abruptamente param de ingeri-la,
muitas vezes sofrem com uma acne papular medonha durante meses enquanto os
depósitos da Substância lentamente são eliminados do corpo. Os funcionários vão
te informar que isso ocorre porque a pele na verdade é o maior órgão excretor
do corpo.
Ou que o coração dos
alcoólatras – por motivos que Dr. nenhum conseguiu explicar – incha até obter o
dobro do tamanho do coração humano civil, e nunca volta ao tamanho normal.
Que pode pegar meio que
um leve baratinho anfetamínico se consumir velozmente três refris e um pacote
inteiro de Oreo de estômago vazio (mas precisa segurar sem vomitar pra dar o
barato, o que os residentes mais antigos vivem esquecendo de contar).
Que o arrepiante termo
hispânico pro transtorno interno que conduz o viciado incessantemente de volta
à Substância escravizadora é tecato gusano – e aparentemente conota algum tipo
de verme psíquico interior que não pode ser saciado ou morto.
Que é possível, durante
o sono, que alguns colegas de quarto extraiam um cigarro do seu maço de
cabeceira, acendam, fumem até o sabugo, e aí amassem no cinzeiro de cabeceira
sem te acordarem e sem incendiarem nada. Você será informado de que essa
habilidade normalmente é adquirida em instituições penais, o que diminuirá a
sua inclinação a reclamar do hábito.
Que as mulheres são
capazes de ser absolutamente tão vulgares quanto às funções sexuais e
excretórias quanto os homens.
Que mais de 60% de
todas as pessoas presas por delitos ligados a drogas e álcool relatam ter
sofrido abuso infantil, com dois terços dos 40% restantes relatando que não
conseguem lembrar a infância em detalhes suficientes pra relatar se ‘sim’ ou
‘não’ no quesito abuso.
Que há exatamente
tantos termos de gíria pro órgão sexual feminino quanto pro masculino.
Que um paradoxo pouco
mencionado do vício é: ao notar estar suficientemente escravizado por uma
Substância pra precisar largá-la e se salvar, a Substância escravizadora terá
se tornado algo tão profundamente importante a você que praticamente
enlouquecerá quando lhe for tirada.
Que certas pessoas
simplesmente não vão gostar de você por mais que você tente.
Que por mais que se
ache inteligente, na verdade você é bem menos inteligente do que acha.
Que mais de 50% das
pessoas com um vício em Substâncias também sofrem de alguma outra forma
reconhecida de transtorno psiquiátrico.
Que dormir pode ser uma
forma de fuga emocional e pode com o devido esforço tornar-se um vício. Que se
privar propositadamente de sono também pode ser uma fuga viciante.
Que é possível ficar
tão puto que você realmente vê o mundo vermelho.
Que validade lógica não
é garantia de verdade.
Que as pessoas más
nunca acreditam serem más, mas na verdade que todos os outros o sejam.
Que é possível aprender
coisas valiosas com um imbecil.
Que prestar atenção a
qualquer estímulo por mais de alguns segundos requer esforço.
Que é estatisticamente
mais fácil uma pessoa com QI baixo largar um vício do que uma com QI alto.
Que atividades
entediantes se tornam perversamente menos entediantes se se concentra nelas.
Que se um número
suficiente de pessoas numa sala quieta estiver bebendo café é possível
discernir o som do vapor saindo das xícaras.
Que às vezes os seres
humanos simplesmente necessitam ficar sentados quietinhos e, tipo, sofrer.
Que ficará bem menos
preocupado com o que as outras pessoas pensam de você ao perceber o quanto elas
pensam pouco em você.
Que existe uma coisa
chamada bondade, crua, inadulterada, sem-segundas-intenções.
Que é possível cair no
sono durante um ataque de pânico.
Que quase todas as
pessoas viciadas em Substâncias também são viciadas em pensar, o que significa
que elas mantêm uma relação compulsiva e patológica com o próprio pensamento.
Que o espirro de todo
mundo soa diferente. Que as mães de certas pessoas nunca as ensinaram a cobrir
ou desviar o rosto ao espirrarem.
Que as pessoas de quem
deve ter mais medo são as pessoas que sentem mais medo.
Que requer muita
coragem pessoal deixar-se parecer fraco.
Que meio que todo mundo
se masturba.
E muito, no fim das contas.
Que certas pessoas
sinceramente devotas e espiritualmente avançadas acreditam que o Deus delas as
ajuda a encontrarem vagas de estacionamento e lhes dá palpites de números da
loteria.
Que a generosidade
anônima também pode ser uma Substância.
Que transar com alguém
com quem não se importa te deixa ainda mais sozinho do que sequer ter transado,
depois. Que é permitido sentir falta.
Que todo mundo é
idêntico na sua tácita crença secreta de que bem lá no fundo é diferente de
todo mundo. Que isso não é necessariamente perverso. E que no final está tudo
bem.
WALLACE, David
Foster. Graça infinita. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
David Foster
Wallace nasceu em Nova York, em 1962. É autor de romances como "Graça infinita" (1996), volumes de contos como "Breves entrevistas com homens hediondos" (1999) e duas antologias de ensaios como a compilação "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo" (2009, seleção: Daniel Galera), entre outros livros. Ao
se suicidar, deixou um romance inacabado, "The Pale King", publicado postumamente
em 2011.
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