Mote do encontro 27/01/15



Texto lido por Jussara Ribeiro de Oliveira


A história da aia 




Volto pelo hall em penumbra e subo as escadas abafadas, pé ante pé até meu quarto. Sento na cadeira, com as luzes apagadas e meu vestido vermelho abotoado e lacrado. Só é possível pensar claramente se se está vestida.
O que me faz falta é a perspectiva. A ilusão de profundidade gerada por uma moldura, pela disposição de formas de uma superfície plana. É necessário perspectiva. Sem ela existem apenas duas dimensões. Sem ela, a gente vive com o rosto colado na parede, tudo se resume a um imenso primeiro plano de detalhes, minúcias, cabelos, a dobra de um lençol, as moléculas de um rosto. Nossa própria pele é apenas um mapa, um diafragma de futilidade, riscado por pequenas estradas que não levam a lugar nenhum. Sem ela, a gente vive o momento. Que é onde eu não quero estar.
Mas é onde estou, não há como fugir disso. O tempo é uma arapuca, estou presa nele. Devo me esquecer do meu nome secreto e de tudo o que passou. Meu nome agora é Defred, e é aqui onde eu vivo.
Viver no presente, tirar dele o máximo proveito: é só o que temos.
Hora de fazer um balanço.
Tenho trinta e três anos. Tenho cabelos castanhos. Tenho um metro e setenta de altura, sem sapatos. Tenho dificuldade em me lembrar da minha aparência anterior. Tenho ovários viáveis. Tenho mais uma chance.
Mas alguma coisa mudou agora, hoje, esta noite. As circunstâncias se modificaram.
Posso pedir alguma coisa. Não muita coisa possivelmente; mas alguma coisa.
Os homens são máquinas de sexo, dizia Tia Lydia. E pouco mais do que isso. Só querem uma coisa. Vocês tem que aprender a manipulá-los, pelo seu próprio bem. Mantê-los em rédeas curtas – isso é uma metáfora, claro.  É o esquema da natureza. O plano de Deus. É a vida como ela é.
Dizer isso ela não dizia; mas estava implícito na maneira como falava. Pairava sobre a sua cabeça, como os dizeres dourados pintados sobre as cabeças dos santos, em épocas mais obscuras. Também como eles, ela era angular e descarnada.
Mas como encaixar nisso o comandante, tal como ele é agora, no seu escritório, com seus joguinhos de palavras e o seu desejo... desejo de quê? De ter com quem jogar, de ser docemente beijado, como se fosse a sério.
Agora preciso levar a sério este seu desejo. Pode ser importante, pode ser um passaporte, pode ser a minha ruína. Preciso me compenetrar disto, preciso ponderar a respeito. Mas não importa o que eu faça, sentada aqui no escuro, como os holofotes lá fora, iluminando o retângulo da minha janela, penetrando as cortinas etéreas como um vestido de noiva ou um ectoplasma, enquanto seguro uma de minhas mãos com a outra e me balanço levemente, para frente e para trás. Não importa o que eu faça, há algo nisso de hilariante.
Ele queria que eu jogasse mexe-mexe com ele, que o beijasse como se fosse a sério.
Esta é uma das coisas mais bizarras que já me aconteceram em toda minha vida.
O contexto é tudo.                                  




Margaret Eleanor "Peggy" Atwood é uma escritora canadense: romancista, poetisa, ensaísta e contista, que foi reconhecida com inúmeros prêmios literários internacionais importantes. Recebeu a Ordem do Canadá, a mais alta distinção em seu país.

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