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Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley

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A criatura acabou de falar, e fixou seus olhos em mim à espera de uma resposta, mas eu estava perplexo, confuso e incapaz de organizar minhas ideias para entender toda a extensão de sua proposta. Ele continuou: “Você tem que criar uma fêmea para mim, com quem eu possa viver numa harmonia compatível com as necessidades de meu ser. Isso, só você pode fazer. Eu o exijo como um direito que você não pode recursar.” A última parte de seu relato reacendera novamente minha ira, que havia se extinguido quando ele narrara sua vida pacífica entre os moradores do chalé, e, quando ele disse aquilo, já não pude conter a raiva que quiemava dentro de mim. “Eu recuso”, respondi; “e nenhuma tortura jamais arrancará de mim um consentimento. Você pode me tornar o mais infeliz dos homens, mas nunca conseguirá aviltar-me a meus próprios olhos. Criar uma outra criatura como você, cuja maldade conjunta poderia devastar o mundo? Vai embora! Já lhe respondi. Mesmo que me torture, eu jamais con...

A Marcha de Alberto, de Bruno Flores

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A marcha de Alberto O velho almirante Braga abria caminho na multidão entre o Gandhi, a Marilyn Monroe e o Saci Pererê. Corpos suados bailavam entre confetes e serpentinas, enquanto uma colorida bola de praia era estapeada pra lá e cá sobre o mar de cabeças. Uma fadinha purpurinada passava em pernas-de-pau, outra balançava um bambolê e homens vestidos de noivas, baianas e quengas tocavam instrumentos. Era a vitória inquestionável da insanidade coletiva. Afinal, não se tratava de um pesadelo nem o velho almirante estava alucinando ou ficando gagá. Era, sim, aquele período em que a cidade obtinha o alvará da vagabundagem para cinco dias de embriaguez, galhofa e sem-vergonhice. Era o maldito carnaval carioca. O teu cabelo não nega mulata Porque és mulata na cor Mas como a cor não pega mulata Mulata eu quero o teu amor A marchinha trouxe lembranças dos bailes de gala no Teatro Municipal, ele e os colegas de escola naval vestindo fraques elegantes, as mulheres brilhando em fanta...

Cló, de Lima Barreto

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CLÓ O doutor Maximiliano bebeu ainda uma cerveja e, acabada que foi a cerveja, saiu vagarosamente um tanto trôpego. A noite já tinha caído de há muito. Era já noite fechada. Os cordões e os bandos carnavalescos continuavam a passar, rufando, batendo, gritando desesperadamente. Homens e mulheres de todas as cores - os alicerces do país - vestidos de meia, canitares e enduapes de penas multicores, fingindo índios, dançavam na frente ao som de uma zabumbada africana, tangida com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos, uns, estridentes, outros. As danças tinham luxuriosos requebros de quadris, uns caprichosos trocar de pernas, umas quedas imprevistas. Aqueles fantasiados tinham guardado na memória muscular velhos gestos dos avoengos, mas não mais sabiam coordená-los nem a explicação deles. Eram restos de danças guerreiras ou religiosas dos selvagens de onde a maioria deles provinha, que o tempo e outras influências tinham transformado em palhaçadas carnavalescas... Certament...

A folia, de Guilherme Preger

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Prezados, já temos o plano detalhado para o ensaio geral de nosso enredo, “Os Patos no Maravilhoso Reino da Folia Golpista”. Começaremos o desfile com um grande carro abre-alas, o “Pato Rei”, composto pela enorme alegoria de um majestoso Pato, com 20 metros de altura, todo realizado em teflon amarelado e ilustrado com motivos decorativos de nosso artista convidado, o pintor Romero Britto que veio diretamente de Miami para participar de nosso barracão. Logo em seguida virá nossa Comissão de Frente, cujo mote será “Salvação Nacional” e cujos integrantes virão com cartolas e fraques, relembrando nossos saudosos Barões do Império. Eles virão fazendo mesuras aos milhares de patos das arquibancadas e camarotes. Em seguida, teremos o sensacional dueto de passistas. Nosso Mestre-sala virá caracterizado com a fantasia do mediúnico patrono Romero Jucá, vestido de cartomante e com cartas e búzios na mão. A Porta-Bandeira trará uma inovação arrasadora: em vez de portar uma bandeira num esta...

A revolta do soluço, por Manuel Lima Dias

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A Revolta do Soluço Por Manuel Lima Dias Para o artista plástico Everardo Miranda “ Bem-aventurados os que não sofrem metáforas” weitergang   1050 , quinquagésima primeira folha, Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão e Paulo Ramos Filho Rio de Janeiro, novembro de 1973 Um soluço súbito apoderou-se de Antônio.   Tapou a boca e arregalou os olhos.   Quem?   O soluço ou Antônio?   Não importa: coisa boa, não era.   Ou um ou o outro teve seus ombros a pulsar.   O soluço se multiplicou pelo corpo de Antônio, e Antônio se multiplicou pelo efeito do soluço.   Ou vice-versa e o contrário...   Não sei, e não interessa. Um olhou pro outro e quis firmar sua autoridade. A força de um soluço está no caos.   Ninguém consegue contê-lo, espasmo após espasmo ele inflige a anarquia no comando de quem julga detê-lo.   (...) Mas para Antônio, nada mais fácil de combater do que...

Sobre​ ​silhuetas​ ​e​ ​sombras​ ​projetadas, de Maria Paganelli

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O entardecer é sobre um amor específico, um romance específico, mais especificamente. Entardece e é mais difícil enxergar o que acontece na minha moradia. Vejo bem nitidamente as silhuetas que percorrem o céu mudando de cor. Desenham em cores fortes, delicadas e mutáveis. Já as sombras são puro breu e aumentam mais a cada instante. Ele está certo, é o horário em que menos dá pra se ver as coisas. Nada se vê, nada se entende. Nem por mim que construí tudo aquilo que pode ser silhueta e sombra, mas muito menos pelo curioso visitante com uma pequena vela que o guia. De dentro da casa eu era acostumada a enxergar sem luz a minha escuridão e, quando o encontrei na porta, aproveitava o que ele conseguia enxergar para ver com seus olhos a minha casa, ver como sou com outra percepção. No meio a isso acontece um apagão do que eu via lá dentro e não consigo mais entender de onde vem aquelas projeções esquisitas. Que sombras são aquelas sem formas específicas? Sou eu ou ele? Ou somos os dois que ...

Sempre aos domingos, por Bruna Viana

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Te amo sempre, aos domingos. Enquanto arrasto minha ressaca, de álcool ou de sono, para qualquer compromisso familiar em que eu deva sorrir. Te amo, no trajeto, enquanto empurro o pedal da bicicleta, cansada em parte pela minha falta de técnica e, em muito, pelas sobras emocionais de outros seis dias em que vivi. Te amo porque chove ou faz calor e sempre tenho de lidar com as consequências de me vestir de forma incompatível com clima –preciso, constantemente, de agasalho ou de filtro solar. Te amo porque almoço o que não queria, porque sinto sono durante a tarde e vontade imensa de uma rede qualquer que sustente minha alma desconfortável e, quem sabe assim, torne-me um pouco mais leve. Te amo porque o dia entardece desse jeito implacável e me obriga ao porvir de outra semana. te amo porque não sei mais o que esperar de outra semana. Te amo enquanto procrastino a bagunça do armário e descumpro a velha promessa da faxina aos domingos. Te amo porque despejo em ligações para novos ou velh...