Sobre​ ​silhuetas​ ​e​ ​sombras​ ​projetadas, de Maria Paganelli

O entardecer é sobre um amor específico, um romance específico, mais especificamente. Entardece e é mais difícil enxergar o que acontece na minha moradia. Vejo bem nitidamente as silhuetas que percorrem o céu mudando de cor. Desenham em cores fortes, delicadas e mutáveis. Já as sombras são puro breu e aumentam mais a cada instante. Ele está certo, é o horário em que menos dá pra se ver as coisas. Nada se vê, nada se entende. Nem por mim que construí tudo aquilo que pode ser silhueta e sombra, mas muito menos pelo curioso visitante com uma pequena vela que o guia. De dentro da casa eu era acostumada a enxergar sem luz a minha escuridão e, quando o encontrei na porta, aproveitava o que ele conseguia enxergar para ver com seus olhos a minha casa, ver como sou com outra percepção. No meio a isso acontece um apagão do que eu via lá dentro e não consigo mais entender de onde vem aquelas projeções esquisitas. Que sombras são aquelas sem formas específicas? Sou eu ou ele? Ou somos os dois que desenham a escuridão indefinida dentro de mim? As sombras que projeto pela luz em comum ficam cada vez mais difíceis de entender se mostram um caminho para dentro da casa ou nos embarreiram, expondo todo o medo de alguma iluminação. A nossa vela, com o tempo, derrete na mão dele e também pinga sobre meus pés descalços. Incômodos e dores acontecem num sábado feio. Dos meus olhos escorrem algumas coisas que não sei do que nomear. E como a vela, também me queimam e doem. Não entendo. É como se agora brilhasse no meu olho aquele reflexo da vela, quando fui atender a porta. Sem dúvidas derretia alguma parte de mim ali bem à beira da rua. Mas ele trouxe uma vela pequena, chamas inseguras que dançam bastante no fio envolto em cera branca e nos meus olhos castanhos como os dele. Não entendo... - Lá fora entardece passando cores infinitas no céu. Lá fora as cores se escurecem, ficam cada vez mais parecidas com o tom escuro de azul que tenho dentro do meu quarto apagado. Sintonias muitas nesse encontro entre fora e dentro de casa. Entre os dois. Entre dia e noite. Num encontro de fim de tarde, que é momento de indefinição tão emocionante. Nesse meio do caminho acontece aquele silêncio demorado: o tempo das respirações. Enquanto respiramos, eu, ele e a vela, me vejo a um silêncio de distância de convidá-lo a entrar, iluminar o ambiente, os candelabros e a lareira daqui de dentro. Mas dele eu ainda não sei, só ouço respirações.

Conto lido no encontro de 07/11/2017

Maria Paganelli é artista. Pinta, escreve e tem uma banda de forró chamada Patuá. Ela se entrega com uma sensibilida ímpar ao que faz, como demonstra em um belo sorriso italiano cheio de vitalidade. Veja seus trabalhos em: https://www.facebook.com/mariaivpaganelli/?notif_id=1510486672450253&notif_t=page_invite&pnref=story



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