Se Deus me chamar não vou, Mariana Salomão Carrara

Às vezes não durmo. Principalmente quando o dia foi tão péssimo que eu não quero que o outro dia chegue porque fico pensando que vai ser pior. Daí, antes de eu desenvolver uma nova técnica, eu comecei a chantagear deus. 

Mas era uma chantagem estranha porque eu não tinha muito poder e pode ser que pra ele não tivesse importância que uma menina parasse de vez de acreditar nele. Ou pode ser que ele não exista mesmo, eu ainda não decidi, e algo me diz que a minha opinião sobre isso não tem a menor importância pra ele, se ele existir, enato eu posso demorar o quanto eu precisar. 

Eu dizia que se eu não dormisse em quinze segundos, deus não existia. E começava a contar. Cada vez que chegava perto dos quinze, eu dava uma chance pra ele, esticava até trinta, depois até um minuto, afinal ele podia estar ocupado ou não ter me escutado, e quanto mais perto chegava do sessenta mais eu me agitava, um pouco com medo de dormir de repente e depois acordar muito assustada com a presença desse deus, mas também, e cada vez mais, com o medo de continuar contando, infinito, a noite inteira, e nunca dormir, mais e mais sozinha, porque não existia deus nenhum me escutando contar, e eu podia ficar ali acordada por várias noites e vários dias que não tinha ninguém me olhando e se importando comigo, e que portanto era impossível saber quem estaria decidindo que pessoas devem nascer e morrer, e que poderia ser alguém muito mau, ou, pior, poderia não haver controle nenhum. 

Um dia, completamente exausta de uma madrugada inteira de contagem e ameaças e preces, entrei na capela da escola e andei bem depressa até a figura que mais me parecia conter deus, que seria Jesus, todo coitado ali em cima, crucificado e sangrando, os olhos baixos de miséria e tristeza, olhei pra ele uns segundos e estendi bem evidente o meu dedo do meio, e sustentei por quinze segundos, que era o tempo que eu achava que ele tinha pra me fazer dormir, daí virei as costas e saí.

Foi bom, foi bem gostoso, por uns minutos. Depois eu chorei, chorei muito, porque Jesus era tão bonito e dolorido, ele sofria ali em cima há tantos anos, e as mãos estavam presas de um modo que ele não poderia me mostrar o dedo do meio de volta. Eu fui injusta, e egoísta, e muito ruim.

Levei vários dias um pouquinho do meu lanche pra ele. Eu deixava embaixo da cruz, e na saída ia olhar e o lanche continuava ali, e eu estava sempre com fome e acabava comendo. No fim concluí que ele tinha me perdoado. Ou que ele não existe. E que de toda forma, não serve pra me fazer dormir.  

(Se deus me chamar não vou, de Mariana Salomão Carrara, lido por Ana Claudia Calomeni para o encontro de 09/02/2021)



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz

Homens não choram