A Caixa, por Guilherme Preger

 

O doutor Adolfo Minguela, médico, formado na Universidade Gama Filho no Rio de Janeiro e doutor pós-graduado em Epidemologia na Freiburg Universität, na Suíça, olhou aquela caixa de caixas. Eram 100 caixas coloridas de verde e amarelo no interior da grande caixa preta. Ele pensou na antiga caixa de Pandora, que na verdade não era caixa, mas um vaso, ou uma ânfora, semelhante a uma vagina. Epitemeu abriu o vaso e de dentro escaparam os eflúvios de Pandora, que desgraçaram a humanidade. Faltou apenas a esperança que permaneceu no vaso. A esperança é aquela que permanece.

A mensagem do Ministério era transparente como um comando: as caixas foram fornecidas gratuitamente, pagas por empresas que preferiram se manter no anonimato e deveriam ser distribuídas imediatamente. Os médicos precisavam enviar relatórios semanais do destino da distribuição e de quantos pacientes (na medicina não existem doentes, apenas pacientes) estavam sendo atendidos. No entanto, não havia espaço para relatar o progresso do tratamento individual. Mas o doutor Minguela não estranhou. Seu dever era distribuir as caixas e nada mais. Ele era um funcionário zeloso e correto e não lhe cabia questionar a ausência de espaço para o progresso do tratamento. Ele sabia que não era isso que importava. O fato fundamental era saber que as caixas estavam sendo utilizadas. O importante era esvaziar as caixas.

Cada caixa continha 20 comprimidos e as instruções eram que deveriam ser receitadas duas pílulas por dia, manhã e noite. E foram essas instruções que o doutor Adolfo transmitiu às enfermeiras. Elas perguntaram se deveriam ministrar as doses a todos os doentes (as enfermeiras ainda chamam os pacientes de doentes, mas é por vício de formação e por falta de estudo). A todos os pacientes sem exceção, respondeu secamente o doutor Minguela. Cada enfermeira ficou com 10 caixas, uma para cada paciente de uma mesma ala. A enfermeira-chefe, no entanto, estranhou a ausência de bula nas caixas. Nunca vi remédio sem bula, disse a enfermeira-chefe. Justamente, respondeu o doutor Minguela, pós-graduado na Freiburg Universität, não há bula para que vocês enfermeiras resistam à tentação de alterar as etapas do tratamento sem o conhecimento dos médicos. Mas eu gostaria de saber como é que vamos conseguir ministrar as cápsulas nos doentes entubados e desacordados, insistiu a enfermeira-chefe. Da maneira usual, respondeu o doutor Minguela, abrindo as cápsulas e vertendo o pó dentro do soro intravenal. Mas, doutor, respondeu novamente a enfermeira-chefe, eu nunca vi cápsulas tão bem fechadas. Eu tentei abrir uma delas, mas não consegui. Estão seladas. Por isso queria ler a bula, para saber se haveria alguma maneira especial de abrir as cápsulas.

O doutor Minguela dispensou a enfermeira-chefe para ele pensar melhor como resolver o problema das cápsulas. Pegou uma delas e a observou. Jamais em sua carreira de epidemologista formado na Freiburg Universität da Suíça vira caixas de remédios semelhantes, ostensivamente coloridas com os matizes da bandeira nacional. Abriu uma das caixas e observou que as cápsulas também eram da mesma cor. E de fato, a enfermeira-chefe tinha razão, as cápsulas estavam seladas como se fossem soldadas. Além do mais o invólucro plástico era de um tipo sem igual na indústria farmacêutica. Não havia como abrir a cápsula sem destruí-la. Voltou a chamar a enfermeira-chefe: cada cápsula deve ser introduzida no ânus do paciente, utilizando tubos de ozônio como propulsores retais. A enfermeira-chefe estranhou tal procedimento, mas achou melhor não questioná-lo pelo tom severo de voz que o doutor Minguela utilizou. E saiu de seu escritório.

O doutor Minguela, sozinho em seu escritório, olhou para fora da janela e viu o pátio desolado do hospital público feito de concreto sem uma nota de cor verde sequer. Aproximava-se o fim do expediente. Estava cansado, era o momento de se aposentar. Muito tempo já servira ao Estado, como médico público. Mas nunca estivera numa situação como aquela em que o Ministério determinava o tratamento, sem permitir réplicas. Ele observou a estranha cor da caixa das caixas, aquela que lhe lembrara o vaso de Pandora. Nunca antes o hospital recebera insumos em caixas pretas. A caixinha colorida dos comprimidos estava aberta sobre sua mesa, algumas cápsulas espalhadas em torno da caixinha colorida. Era óbvio que cada comprimido daqueles não passava de um placebo, o doutor Minguela sabia disso muito bem. E ministrá-los pelos ânus dos pacientes, não teria efeito algum uma vez que estavam desacordados. Os enfermeiros estavam acostumados a receber ordens e não iriam questionar o método dos médicos, ainda mais dos doutores formados na Suíça. Adolfo Minguela estava tranquilo em relação a isso. O que o inquietava era outro assunto.

Vinte comprimidos estavam espalhados sobre sua mesa. Cada um deles era um placebo, mas o que aconteceria se ingerisse os vinte de uma só vez? Seu desejo era fazer isso pelo ânus, exatamente como nas instruções que passara aos enfermeiros, mas com vinte cápsulas isso seria difícil e além do mais ele não teria acesso aos propulsores retais de ozônio. Uma garrafa de água interinha estava em seu escritório e lhe serviu para ingerir os comprimidos um a um. A caixinha ficou vazia e era a última da grande caixa preta, que agora estava vazia. Obedecera aos comandos: todos os remédios haviam sido distribuídos. Missão cumprida. Debruçou a caixa preta aberta sobre a mesa para tudo que havia no seu interior pudesse sair. Um comprimido era placebo, mas os vinte juntos seriam o quê? Não havia mais rigorosamente nada dentro da caixa, cujo interior agora estava escuro. A caixa estava inteiramente vazia mas não podia deixar de olhar para ela, como se procurasse alguma coisa. Mas sua vista foi ficando escura tal como o interior da caixa.

Sentiu uma vertigem, ou uma tontura e nada mais no escritório permanecia fixo em sua posição, a não ser a escuridão da caixa, plácida, profunda, imensa.

(Conto lido para o encontro de 26 de janeiro de 2021)

Guilherme Preger é escritor carioca e não gosta de políticos e escritores placebos


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