Gustavo e o Bicho, por Guilherme Preger

Gustavo e o bicho



    Tudo ia bem para o pequeno Gustavo em seu cotidiano humilde até que lhe tiraram a creche, a praça e a praia. 

    Tudo por causa do bicho, é o que lhe diziam. Há um bicho lá fora, e se você sair ele pode te pegar. 

    E o mundo do pequeno Gustavo ficou reduzido à sua simples casa, que incluia seu quarto, que dividia com 3 irmãos e uma irmã, todos mais velhos, o quarto dos pais, que havia sido seu primeiro quarto, mas do qual havia sido expulso no ano anterior, sem seu entendimento ou consentimento, o que muito lhe magoou. Mas assim é a vida, e esta expulsão tinha sido sua primeira ou segunda perda como dirão alguns (pois a primeira perda seria a do líquido amniótico da placenta do ventre de sua mãe, e a segunda perda a do bico do seio materno, mas isso é assunto para especialistas e Gustavo ainda não entende isso).  Há também a sala de estar e de jantar, onde há uma grande mesa e a televisão onde passam os desenhos animados e os programas de auditório. Gustavo gosta dos primeiros e seus pais do segundo. Seus irmãos, no entanto, preferem ficar o dia todo em seus celulares (os quatro irmãos mais velhos compartilham dois celulares, sendo um exclusivamente de sua irmã). 

    E há também a assim chamada “área de serviço”, onde está o varal, a máquina de lavar, um tanque e um monte de coisas que Gustavo gosta de mexer. A área de serviço, com seu piso frio, se tornou seu território de brincadeiras nesses tempos de estranho confinamento (termo desconhecido para o pequeno Gustavo, que não entende seu significado, embora entenda que não possa ir “lá fora”, seja na creche, na praça ou na praia, por causa do bicho). 

    O que seria o bicho, perguntava Gustavo, sem que seus irmãos se dessem trabalho de responder. As pessoas tinham que deixar os sapatos do lado de fora da casa, e por algum motivo, entravam em casa mascaradas e a mãe mandava ir direto ao banho, inclusive papai; e Gustavo imagina que o bicho seria sujo e pegajoso, que se prenderia nas roupas e como cocô de cachorro ficaria preso nos sapatos. Seu irmão mais velho, um dia lhe mostrou, não sabia Gustavo se ele estava brincando ou não, como o bicho era um bola gosmenta roxa cheia de espinhos como um ouriço. 

    Gustavo se achava injustiçado pois os irmãos mais velhos continuavam a sair para ajudar o pai na mercearia (que era outro lugar que o pequeno gostava de ir, mas que também estava proibido. Na mercearia, ele gostava de pegar sorvete sem pagar, pois seu pai era dono do lugar, e Gustavo mesmo muito pequeno já começava a desenvolver essas lamentáveis características narcísicas da sociabilidade humana, mas este é outro assunto de eruditos que deixaremos para outra oportunidade). 

    A criança, obviamente, não tinha simpatia nem pelo bicho nem por esse mesmo período de “confinamento”, mesmo que isso significasse não precisar mais ir à creche, onde havia outras crianças como ele, a maioria muito chata e briguenta, mas onde também estava o Ronaldo, seu melhor amigo (embora o conceito de amizade fosse ainda muito abstrato para sua cabecinha, mas podemos supor que Gustavo e Ronaldo eram amigos, senão por verdade, talvez por conveniência). Enfim, a área de serviço foi bacana no primeiro mês, mas nos seguintes, francamente, Gustavo preferia a praça, nem que tivesse de voltar para a creche e novamente encarar o Átila (que, ao contrário do Ronaldo, era seu inimigo, embora a inimizade também fosse um sentimento para além de sua capacidade cognitiva). 

    Mas nenhuma experiência se comparou à do aniversário do Pedro, seu primo, dois ou três anos mais velho (Gustavo ainda não havia aprendido a contabilizar as idades, mas sabia que Pedro era mais “experiente”). Pois usualmente quando Pedro fazia aniversário, iam todos à praia perto de onde a família de Pedro morava, na verdade, seus tios e outros primos,  e Gustavo gostava muito daquela praia (que, embora não faça a menor diferença para a economia formal desta presente obra ficcional, vale apontar que a referida praia é a de Itaipu, no município de Niterói, onde moravam Pedro, o tio Carlos, a tia Maria, a prima mais velha, irmã de Pedro, Juliana e o primo ainda mais velho, Carlinhos – o Carlão era seu pai. Vale observar que Gustavo se enganou, pois a família do tio Carlão morava em Pendotiba, que não era perto da praia, na verdade era em outro município, o de São Gonçalo, mas devemos perdoar essa imprecisão do jovem Gustavo, devido à sua imatura formação). 

    O aniversário de Pedro foi por videoconferência, e chamaram também os outros primos de Pedro por parte de mãe e toda a família de Gustavo se reuniu em volta do único computador da família, que ainda era do tipo “desktop”, para celebrar o aniversário e então nosso pequeno protagonista viu o bolo colorido que haviam feito para Pedro, obra de sua tia Marcília, que morara também em Pendotiba e também estava na videoconferência, e então acenderam as velas, daquele tipo que solta faíscas e cantaram os parabéns, e perguntaram com quem Pedro iria se casar (e chegaram à conclusão, mas Gustavo não entendeu,  que Pedro iria se casar com sua irmã mais velha Rafaela que, por sinal,  ficou muito zangada com essa história e saiu da sala onde estava o desktop) e quando afinal começaram a distribuir o bolo, não havia bolo nenhum para Gustavo e sua família comerem, o que foi um evento extremamente infeliz para todos, e Gustavo diria até “idiota” se soubesse  o que essa palavra quer dizer, pois só pode ser idiota um aniversário sem bolo, e Gustavo se perguntava se havia alguma possibilidade do bolo de Pedro magicamente chegar à casa de sua família e foi nesse exato momento, por causa desse evento idiota de aniversário na frente de computador sem bolo, e por causa desse bicho idiota, por causa do idiota do Átila, por causa dos idiotas de seus irmãos que não lhe contavam a verdade, por causa de ter perdido o bico do seio de sua mãe, conforme diziam os especialistas, e por muitos outros motivos, todos eles extremamente irracionais, que Gustavo sentiu desejo imenso de chorar, mas como ele era um menino corajoso, segurou as lágrimas e não passou vexame diante de seus pais e irmãos. 

    Quem chorou mesmo foi sua mãe, pelo menos foi o que Gustavo percebeu de umas lágrimas caídas de seu rosto, quando ela soube no jornal da televisão naquela mesma noite que já haviam morrido umas cento e cinquenta mil pessoas no Brasil por causa daquele bicho.  

(Conto escrito para o encontro de 06/10/2020 sobre o mote de Passeio com Grisha de Tchecov) 

Guilherme Preger é  o bicho como escritor 



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