A Velha, por Teolinda Gersão

A velha


Uma vez por ano, jogava na lotaria. Nunca tivera sorte, mas gostava de tentar. Uma vez por ano dava-se ao luxo de perder e fazia essa extravagância. Mas jogava também outros jogos, que de repente lhe vinham à cabeça: todas as semanas procurava na montra da loja da esquina os números que lhe pareciam mais prometedores. Assentava-os num papel e depois ia ver os números premiados, no dia em que andava a roda. Nunca acertava e metia com satisfação num mealheiro o dinheiro que não gastara. E assim tinha um duplo gozo – tinha-se divertido com a escolha do número, o palpite e a expectativa, e ainda por cima arrecadava o dinheiro, rindo-se da sua própria esperteza.

Escrevia de vez em quando aos filhos e aos netos, mas poucas vezes, porque percebera que eles não tinham tempo de ler as cartas. O que era natural, a vida de hoje era tão a correr, as pessoas sofriam muito, sobretudo as crianças, de um lado para o outro, saíam de casa de noite e entravam de noite. Mas ela estava livre dessa correria, tinha todo o tempo por sua conta. 

È verdade que em alguns dias ele era mais difícil de passar, mesmo vendo a televisão até o fim, porque já não tinha olhos para fazer malha. Claro que muitas coisas ela tinha perdido com os anos, em parte os olhos, e muita saúde. Mas sobretudo pessoas. O Jacinto, antes de mais, e depois praticamente todos os amigos, e a família da sua geração. Durante anos afligira-se, de cada vez que riscava mais um telefone na agenda e via os nomes diminuírem a passos largos. Até que finalmente só restara ela.

Tinha as vizinhas, claro, e a porteira. Não havia dia em que não aparecesse uma, ou até mais do que uma, a desabafar, contar novidades, ou simplesmente a saber como ela estava. E havia a Madalena, que deixara de ser vizinha porque fora viver para casa de uma filha, mas não se esquecia dela e telefonava. As mais das vezes para lamentar ter saído dali, e aproveitando para se queixar do genro. 

Por essas e por outras é que ela nunca iria sair dali, pensava a velha. Estava tão bem na sua casa, do seu quintal do tamanho de um lenço, onde podia apanhar sol quando não saía à rua e onde tinha a criação, para se entreter. Agora eram só galinhas, mas já tivera também coelhos. Acabara com eles quando começou a não poder baixar-se para lhes apanhar a erva. Teve pena, mas, vendo bem, as galinhas bastavam. Tinha sempre ovos, de vez em quando pintos, e depois a filha da porteira vendia-lhe os frangos no mercado. Frangos do campo, mais caros e muito mais saborosos do que os outros. Sempre era um rendimento, e além disso um entretém e uma companhia. 

Além de que gostava de ouvir o galo cantar. Acordava com ele, de madrugada. E também pelo dia adiante ele não parava de cantar. 

Para dizer a verdade, a única coisa que tinha medo era de que pudessem forçá-la a sair dali. Pensava nisso às vezes, sentada na cadeira de orelhas e olhando em volta os objectos da sala. Entrincheirando-se atrás deles, como se pudesse protegê-la, o relógio da parede, a estante, a mesa, o guarda-louça, as cadeiras. 

(Mote lido por Ana Claudia Calomeni para o encontro de 03/11/2020)

Teolinda Gersão

Conto A velha, publicado em Alice e outras mulheres, Ed. Oficina Raquel 2020

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