Por que escrevo, por Eduardo Galeano


Por que escrevo
Eduardo Galeano. Amaraes. Porto Alegre: L&PM, 2019. pp.160-161

Quero contar a vocês todos uma história que, para mim, foi muito importante: meu primeiro desafio no ofício de escrever. A primeira vez que me senti desafiado por esta tarefa.
Aconteceu no povoado boliviano de Llallagua. Eu passei um tempinho lá, na zona mineira. No ano anterior, e lá mesmo, tinha acontecido a matança de San Juan, quando o ditador Barrientos fuzilou os mineiros que estavam celebrando a noite de San Juan, bebendo, dançando. E o ditador, lá dos morros que rodeiam o povoado, mandou metralhar todos eles.
Foi uma matança atroz e eu cheguei mais ou menos um ano depois, em 68, e fiquei por lá um tempinho graças às minhas habilidades de desenhista. Porque, entre outras coisas, eu sempre quis desenhar, mas nunca ficava bom o suficiente para que sentisse o espaço entre o mundo e eu.
O espaço entre o que eu conseguia e o que eu queria era demasiado abismal, mas eu me dava mais ou menos bem com algumas outras coisas, como, por exemplo, desenhar retratos. E lá, em Llallagua, retratei todas as crianças dos mineiros, e fiz os cartazes de carnaval, dos atos públicos, de tudo. Era de boa caligrafia, e então me adotaram, e na verdade passei muito bem, naquele mundo gelado e miserável, com uma pobreza multiplicada pelo frio.
E chegou a noite da despedida. Os mineiros eram meus amigos, e por isso armaram uma despedida com muita bebida. Bebemos muita chicha e singani, uma espécie de grapa boliviana muito boa, mas um pouco terrível; e lá estávamos nós, celebrando, cantando, contando piadas, cada uma pior que a outra, e eu sabia que às cinco ou seis da manhã, não lembro direito, soaria a sirene que chamaria todos eles para o trabalho na mina, e então tudo acabaria, seria a hora e dizer adeus.
Quando o momento estava chegando, eles me rodearam, como se me acusassem de alguma coisa. Mas não era para me acusar de nada, era para me pedir que dissesse a eles como era o mar.
Disseram:
Agora conta pra gente como é o mar.
E eu fiquei atônito porque não me vinha nenhuma ideia. Os mineiros eram homens condenados à morte antecipada nas tripas da terra por causa do pó de sílica. Nas covas e grutas, a média de vida, naquele tempo, era de trinta, trinta e cinco, e não passava disso. Eu sabia que eles jamais veriam o mar, que iam morrer muito antes de qualquer possibilidade de ver o mar, porque além do mais, estavam condenados pela miséria a não sair daquele humildíssimo povoado de Llallagua. Então eu tinha a responsabilidade de levar o mar para eles, e encontrar palavras que fossem capazes de molhar todos eles. E esse foi meu primeiro desafio de escritor, a partir da certeza de que escrever serve para alguma coisa.

Mote lido por Camilla Agostini para o encontro do dia 21/04


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz