Raimundinha Viramundo, por Marcos Pedrosa de Souza


Deoclesiano Davidafulo de Graça Filho era um célebre empresário da alta sociedade carioca. Tinha uma mansão de dois andares na Urca, luxuosa, fina, vistosa, e um renomado escritório comercial no centro da cidade. Frequentava o Iate Clube do Rio de Janeiro, onde gostava de ir para espairecer vendo o cair da noite. Isso quando não partia para as laranjeiras para assistir a seu filho mais velho, Deoclesiano Neto, jogar pelo Fluminense, seu clube do coração. Na torcida pelo Fluminense Football Club destilava todas as chateações do dia enquanto via oscratch tricolor, que tinha o Deoclesiano Neto como maior craque e goleador do time, dar suas botinadas. Era um torcedor fanático, apaixonado, doente e, como em tudo, estourado. Daqueles que xingam jogadores e juízes com vontade o tempo todo.
Para fugir dos aborrecimentos do Rio de Janeiro, tratou de dar vazão a uma doce nostalgia campestre que sempre alimentou e que acabou se concretizando na aquisição de uma fazenda à qual deu o nome de Sossega o Facho. Era o lugar em que passava os finais de semana, quando o tempo não favorecia uma das prazerosas incursões náuticas com alguns de seus quatorze filhos em um dos barcos da família. A fazenda era também o lugar para onde despachava a mulher e os filhos menores quando queria ter um pouco de paz durante as férias escolares.
A Sossega o Facho, com seus muitos hectares de terra, era dedicada à criação de gado leiteiro e ficava perto da Serra do Passa Fora, adiante, mas bem adiante mesmo, da cidadezinha de Jesus Cruz Credo do Mato Alto. Ali, quase na divisa com o município de Nossa Senhora do Deus nos Acuda. A casa foi construída no alto de um platô e era alcançada por uma estrada de terra batida que serpenteava o morro em cima do qual a sede da propriedade repousava solene, soberba, imponente. Dava de fundos para uma floresta de Mata Atlântica e lá embaixo havia um prado, cortado por um córrego, que servia de pastagem aos animais. No limite direito do pasto, se situava o estábulo.
Além do gado leiteiro, que ficava sob a responsabilidade de um capataz e seu ajudante, havia o cultivo de árvores frutíferas, hortaliças, leguminosas, todas entregues aos cuidados de seu Jeromildo, um Jeca Total típico, sempre descalço, com a calça dobrada até a canela, o chapéu de palha e o cigarro de fumo de rolo no canto da boca, de um preto retinto à toda prova. Era casado com dona Rosinácea, assim como o marido, negra como a escuridão da noite. Viviam em uma casa simples com água potável, que tiravam de um poço artesiano, iluminação de lampião de querosene, uma fossa ao fundo e, próximo ao casebre, um roçadinho.
A riqueza deles era o cultivo da roça de feijão, milho, abóbora, mandioca, inhame, cará, batata inglesa, do qual a família cuidava com toda a dedicação possível e onde colhiam seus alimentos para o dia-a-dia. Estavam indo para o oitavo rebento e na expectativa com o nascimento de Raimundinha que vinha de uma gravidez complicada que todos achavam que não fosse vingar de jeito nenhum. Dona Rosinácia ficou a imaginar, durante toda a gestação, que iria perder a menina a qualquer momento. Tanto assim que chamou a conhecida Robertina, uma parteira da cidade, para ajudá-los.
Apesar disso, a coisa foi feia. Na noite em que sentiu as primeiras contrações do parto, chovia horrores. Raios, trovões, relâmpagos, o diabo, como que a anunciar o fim dos tempos. Tudo metia medo, especialmente no caso de dona Rosinácia que era religiosa e muito supersticiosa. Foram buscar Robertina às pressas na cidade e ela, depois de muita luta, entregou aquela menininha à sua mãe. Chegou miudinha ao mundo e padecente das piores sequelas. Um fiapo de gente, parecia que não ia sobreviver.
O tempo, no entanto, foi passando, e Raimundinha, por quem todos tinham uma atenção especial, acabou mudando de garotinha franzina para uma criança como outra qualquer que brincava como todas as meninas de sua idade. Como vivia no mato, tinha gosto por se entreter com tudo quanto é bicho. Criava seus passarinhos: canário, azulão, sabiá, galo-da-campina, coleiros e se distraía vendo os tiês, anus-pretos e brancos, saracuras, sanãs, jacus e ainda outras variedades da fauna como os micos-leões-dourados, os tatus, as cutias e as cobras que a encantavam. Impressionante a graça que achava das muçuranas, sucuris, urutus, cotiaras e mesmo de uma das mais traiçoeiras, a cobra coral, que exercia grande fascinação sobre a menina.
Em sua inocência de garota, achava todos os bichos, mesmo os mais peçonhentos, bonitinhos e simpáticos. Implicava era com as maldades que os garotos aprontavam com os pobres daqueles que ela tinha como seus amiguinhos. Quando ficou mais fortinha passou a se desentender com os meninos que se entregavam às suas travessuras de criança matando passarinho com estilingue, cortando rabo de calango, caçando preá do mato. A reação de Raimundinha era às vezes desproporcional. Certa ocasião, acharam que ela iria matar um garoto que dera fim a uma rolinha que ficara presa em um alçapão de bambu. Bateu tanto no menino que ele passou dias se curando das pancadas que levou. Diante da situação, houve o comentário da mulher do capataz da fazenda:
- Sei não, seu Jeromildo e dona Rosinácia. Flor marvada assim de cedo já traz espinho.
E era a pura verdade. Raimundinha passou a aprontar tantas e a ser tão má com os meninos que o casal da roça resolveu consultar dona Heriteia, esposa de seu Deoclesiano, sobre o que fazer. Dona Heriteia achou então que talvez tivesse uma solução para o caso. Trazer Raimundinha para passar uma temporada no Rio de Janeiro cuidando como babá dos seus filhos menores e ajudando nos muitos afazeres de sua casa que já contava com uma legião de serviçais, é bom que se diga. Resolveu consultar Deoclesiano sobre o assunto. O marido respondeu com a delicadeza e cortesia de hábito:
- Ora, veja se não me enche a paciência, Heriteia. Faz a porcaria que você quiser e não me amola.
E assim, Raimundinha mudou de vida. Passou a viver em um mundo que desconhecia por completo, com pessoas elegantes, roupas finas, luxos impensáveis, jantares nababescos e festas, festas e mais festas. Uma coisa que estranhou um pouco é que invariavelmente os muitos casais que conheceu viviam às turras. Às vezes era a mulher que estava a infernizar e dar ordens ao marido, em outras ocasiões, o oposto. A novidade foi que, desde que Raimundinha veio morar no Rio, seu Deoclesiano mudou completamente. Passou a mandar flores para a esposa, a cercá-la de atenções, mimos e paparicos. Dona Heriteia andava nas nuvens, sonhadora, como se tivessem voltado aos tempos de namoro. Quando ia para o Iate, Deoclesiano levava ainda, e feliz da vida, diga-se de passagem, os filhos menores, o que era mais fácil agora com a ajuda da babá que a esta altura estava familiarizada com os luxos dos passeios de barco e dos lanches e jantares no restaurante do Clube.
Raimundinha era também uma outra pessoa. Se transformara em um mulherão vistoso e fazia o maior sucesso na roda de amigos de Deoclesiano. Bastava chegar ao Iate Clube para que todos puxassem conversa com ela. Um deles, o Belmiro, velho companheiro de Deoclesiano, mais entusiasmado, chegou a confessar o desejo de vir a pedir a mão de Raimundinha para se casar com ela. Falou na sua roda de amigos:
- Senhores, Raimundinha é uma princesa etíope das mil e uma noites. Se quiser noivar e casar comigo, é pra ontem. E digo mais, o casamento vai ser de véu e grinalda na Igreja da Candelária.
            Quando Deoclesiano, que andava calmíssimo, soube dos comentários de Belmiro, ficou uma arara. Disse poucas e boas para o amigo e quase partiu para encher de sopapos o pobre do Belmiro que tinha apenas se expressado de forma sincera. Naquele dia, Deoclesiano chegou em casa cuspindo marimbondo. Não demorou para que resolvesse que iria mandar o quanto antes a Raimundinha de volta para a Fazenda do Sossega o Facho. Explicou então o fato a Heriteia e pediu que ela ajeitasse tudo para dali a uma semana. Disse ainda que ele iria pessoalmente levá-la no seu carro novinho, um Studebaker Land Cruiser bullet-nose vermelho.
No dia da partida de Raimundinha, Deoclesiano fez questão de ir bem cedo ao quarto da moça para acordá-la. Bateu uma, duas, três vezes, e ela não respondeu. Continuou insistindo, e nada. A certa altura se viu como um alucinado, dando socos e pontapés na porta. Não adiantou, nem sinal da moça. Tratou então de abrir a porta como um desesperado para constatar que não havia ninguém lá dentro. Esbravejou com todos que se aproximaram preocupados com aquela confusão. A cozinheira e as arrumadeiras estavam assustadíssimas com alguém que agia como um possesso. Procura daqui, procura dali, e não se achava a Raimundinha. Deoclesiano resolveu então ir ao Iate para ver se ela não estaria por lá. Quando chegou ao clube, o rapaz do hangar informou: Raimundinha havia saído de barco ainda de madrugada com Deoclesiano Neto. Nunca mais foram vistos.   


(conto apresentado no encontro de 12/03/2019) 

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj/Consórcio Cederj/SEE-RJ. Formado em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e em letras pela Universidade Santa Úrsula (USU), é mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi colaborador dos jornais O GloboJornal do BrasilFolha de São Paulo, entre outras publicações, e professor da Universidade Estácio de Sá (UNESA).  

 

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