A biblioteca elementar, por Alberto Mussa
Os mortos voltam para
casa. Os encantados, não.
Porque os mortos perdem
o nome quando morrem. O nome pode ir até a encruzilhada do primeiro céu, onde
fica o Urubu de Duas Cabeças, e tentar passar. Pode também arriscar passagem
pelo portal de pedra, entrada da terra dos antepassados, antes que as pedras
fechem e o esmaguem.
O encantado, não. Um
encantado não pode se aventurar nesses lugares, porque é pesado. Encantado é o
morto que não consegue perder o nome na hora de morrer.
Encantados vão sem
rumo, procurando a morte. Não apodrecem, como os mortos. Vão se esgarçando,
perdendo os contornos, com o tempo. Não sentem dor. Têm é muita angústia, muita
agonia. Essa angústia é que provoca o encantamento. Dizem, os encantados, que é
melhor morrer.
A morte precisa ser
aceita. A angústia, na hora da morte, não deixa o nome fugir, se separar da
sombra. Isso é o encantamento, uma grande desgraça.
E os encantados vagam.
Se, daqui, você chamar, você cantar, o encantado vem. Encontra um corpo e vem.
E você fala com ele; e ele fala com você.
É fácil enganar um
encantado, porque ele ainda tem nome. Ele acredita que é ele. Você finge que dá
presentes. E ele pensa que come, que bebe, que fuma, que usa coisas bonitas.
Uma maldade, isso que fazem.
Mas nem sempre é
simples. Os encantados gostam da ilusão; mas às vezes têm raiva, têm inveja,
têm ciúme. Há encantados que são maus, são perigosos. Como o Veludo.
O encantado Veludo é
das ruas, das encruzilhadas. Mas também anda nos cemitérios, na cripta das
igrejas, na margem direita dos rios, onde, dizem, fica seu grande poder.
É também muito ligado
ao chão, à riqueza bruta da profundeza da terra. Tem, por isso, muito comércio
com os encantados da noite, com os encantados da lama, com os encantados do
lodo, com o povo do Oriente.
O Veludo é aquele que
anda por aqui. Foi visto nessa banda, a primeira vez. Mas começou longe, no
Carabuçu, passo do Inferno, cachoeira dos puris. No lugar onde encontrou os
ciganos.
Tinha vindo do lado
esquerdo, quando trouxe os outros dois: o doutor de Coimbra; e o filho da puta
de Madri, uma mulher das Espanhas que deram de comer aos cães, no rio maior de
São Francisco. Essa não chorou na hora da morte.
Tinham pacto de fogo e
sangue, encontro marcado no além, aqueles três. E ouro, muito ouro roubado. Vieram
pelas picadas, pelos caminhos do mato, fugindo das vilas maiores, em conluio
com os coroados, com os puris, com os coropós.
Atravessam o passo do
Inferno, com seus carregadores; e dali procuram a caverna, não muito longe do
Carabuçu, na estalagem onde o Veludo esconde a moça.
Então, de noite, depois
de enterrarem o tesouro, quando os carregadores dormiam no meio do mato, o
filho da puta mata todos eles, um por um. O doutor sabia; o Veludo, também.
Mas traição é caminho
sem volta. O Veludo chega na estalagem, trazendo os dois, e não suspeita que a
vez é dele.
É quando vêm os
ciganos. Conheciam o Veludo; desconfiam do filho da puta; acham estranha a
presença do doutor. Mas bebem, jogam, contam histórias. Um dos ciganos pergunta
pela moça; o Veludo não responde. Carabuçu é um lugar de morte.
No dia seguinte, a moça
não está mais lá. Nem os ciganos. Então começa a agonia do Veludo. Ele vai
atrás, rastreia as pegadas. Procura na caverna, na cachoeira, no passo do
Inferno. Os puris não viram nada. Ciganos têm caminhos que ninguém conhece.
O encantamento, dizem,
começa antes. O Veludo vem para casa, para ter certeza da traição. Mas a moça
não estava aqui; a moça estava longe, com os ciganos. O Veludo, então, se
vinga. Deixa a vingança pronta. E volta. O destino é no Carabuçu.
É o encantamento. É
alguma coisa que lhe diz para esperar ali, naquele lugar. Aquele é o lugar onde
vai rever a moça.
E a moça vem. Vem com
um dos ciganos. Nos olhos dela, o Veludo enxerga seu destino. Está armado. E
avança.
Era gente ainda, quando
encontra a faca do cigano. Veludo começou assim.
Alberto
Mussa nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. Contista e
romancista, conclui, com este A
biblioteca elementar, o “Compêndio mítico do Rio de Janeiro”, série de
cinco romances policiais, um para cada século da história carioca. Recriou a
mitologia dos antigos tupinambás; traduziu a poesia árabe pré-islâmica; e
escreveu, com Luiz Antonio Simas, uma história do samba de enredo. Além de
figurar em listas de “melhores do ano” de veículos como Veja, O Globo e Folha, ganhou os prêmios Casa de Las
Américas, Academia Brasileira de Letras, Oceanos, Machado de Assis (FBN) e
APCA. Estudada na Europa, nos Estados Unidos e no Mundo Árabe, sua obra está
publicada em dezessete países e quinze idiomas.
Fonte: Orelha do
próprio livro
Mote
lido por André Salviano para o encontro do dia 26 de março de 2019
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