João Russo, por Vivian Pizzinga


João Russo era um dos pacientes que mais gostávamos na clínica, embora sua assiduidade ao tratamento sempre tivesse sido aquém em relação àquilo que os supervisores consideravam terapeuticamente indicado, no caso dele. Russo tinha cerca de cinquenta anos. Ou um pouco mais. Um olho cego, um sorriso grátis, uma fala suave, muita vontade de gentileza, excesso de tristeza encarcerada. Quando conversava conosco, confesso: era difícil de entender, parecia que sua língua estava pela metade, danificada. Ou mesmo perambulando, troncha, pelo cerne da boca, e dando encontrões desavisados com o palato e talvez os dentes, que guardaram entre eles, algum dia, uma faca que nunca cravou o coração de ninguém. Russo já teve ódio. Já teve luta. Já teve, principalmente, muito, muito medo. Isso tudo era fácil de enxergar. Dentro dele, no entanto, o que o habitava agora era a loucura, forma possível de esquecimento, escolha de certo abandono de si e do mundo. Já isso era difícil de aceitar.
João Russo não era mesmo dos mais frequentes na clínica. Não era como o Lucas, que ia diariamente e pedia para que comprássemos uma garrafa de dois litros de coca-cola, mesmo no auge de sua diabetes e obesidade, para beber tudo em uma tarde. Não era como o Leo, que ia todo dia e ficava aflito pelo café, falava pouquíssimo, chamava-me de outro nome e também à Catarina. Para o Leo, eu era a Flavinha e a Catarina era a Renatinha. O Russo não ia quase nunca à clínica, mas o Leo estava lá diariamente, assim como nós, as jovens estagiárias no ateliê de modelagem, mãos engessadas de argila, amarronzadas, tentando inventar formas de comunicação e linguagem avulsa com o Leo, até conseguirmos um índice microscópico de breve entendimento.
João Russo tampouco era como a Aninha, que ia todo dia e dizia que havia uma segunda Aninha, a outra Aninha, e tampouco era como o Romero, que diariamente se sentava à mesa, no ateliê de pintura, em um anexo reservado e silencioso, para escrever longos tratados e fórmulas que, em raras ocasiões, mostrava aos seus escolhidos. Russo não era frequente nem mesmo como alguns que iam duas ou três vezes por semana, como a Bete, moça infantilizada e frequentadora assídua do ateliê de tapeçaria, onde fazia cordõezinhos e pulseirinhas para presentear as monitoras de sua predileção.
Não. João Russo não era sim. Ele tinha seu tempo. De ir e de permanecer. Geralmente passava pela pintura e pela modelagem. Era simpático com todos, concentrava-se ferozmente em sua produção, suava ao tecer suas esculturas distorcidas e cheias de uma beleza imprópria, acintosa. Suas obras eram impregnadas de uma expressividade que, nos diziam os supervisores nas sessões de discussão de caso clínico, Russo calara por muito tempo, quando foi preso político nos anos de chumbo da ditadura militar brasileira, essa que muitos esqueceram ou que talvez prefiram que volte. Russo foi um preso político. E a tortura pela qual passou imprime-se na dor de suas esculturas de barro. Nas cores fortes das pinturas que faz com tinta acrílica. Nos cortes na carne e na língua e no olho cego que se fazem revelar – carne, língua, olho – por meio da argila.
Interrompemos a leitura de seu conto para um informe importante àqueles que perderam a memória: a ditadura militar no Brasil durou de 1964 a 1985, tendo sido engrossada em dezembro de 1968 com o Ato Institucional Número 5 – o AI5 –, com aumento das torturas e repressão. Foi apenas em 1989 que a população, pela primeira vez, após anos, participou de eleições diretas para presidente. Há quem negue e há quem sonegue informação, mas é preciso lembrar que muitas pessoas morreram e foram torturadas. João Russo é um sobrevivente cuja memória evita essas passagens e cuja língua, enroscada na dor passada-presente, não nos diz tudo o que viveu.
Voltando à clínica, nós, as estagiárias, os supervisores, a cozinheira, nós o observávamos com espanto e admiração. O que gostaríamos de fazer (e falo por mim e por Catarina, já conversamos sobre isso) era uma forma de extrair dele a vivência da dor física e da dor psicológica. Mas não no sentido psicológico que o termo ‘extração’ pode adquirir. Queremos extrair fisicamente a experiência como um dentista impiedoso extrai um dente. Nunca terá havido um dente uma vez que ele já não mais esteja lá. Queremos, isso sim, uma volta ao passado, a missão de arrancar de João Russo qualquer possibilidade de dor e de enclausuramento em calabouços fétidos. Queremos extrair sua experiência de horror, queremos protegê-lo no passado, muito mais do que protegê-lo do passado.

O Russo, no entanto, chega à clínica, cumprimenta a todos, concentra-se em sua obra, sorri se dirigem a ele a palavra, não oferece grandes continuidades e interesse em assuntar, fica parado, refletindo, e depois vai embora. Quando volta João Russo? Nunca sabemos. Mas é sempre maravilhoso e triste demais vê-lo voltar. Enxergar, em seu olho cego, o resquício da violência sádica; enxergar, em sua insanidade, a prova de que o esquecimento é a melhor maneira de manter-se vivo. Ou, ao contrário, perceber, em sua insanidade, a única maneira possível, viável, de permanecer lúcido. É isso o que nos move a dizer tortura nunca mais. 


(conto lido no encontro de 13/11)


Vivian Pizzinga é escritora e psicóloga/psicanalista. Faz doutorado em Saúde Coletiva no IMS/UERJ. Lançou Dias Roucos e Vontades Absurdas (2013) e A primavera entra pelos pés (2015), além do romance epistolar, Extravior, com Igor Dias (2018), todas pela Oito e meio, e participou de coletâneas tais como Escriptonita (Patuá, 2016), Cada um por si e Deus contra Todos (Tinta Negra, 2016) e Clube da Leitura I, II, III e IV (a última, de 2017, pela Rubra). 


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