A Casa Tomada, por Julio Cortázar
Lembro-me bem da divisão da casa. A sala de jantar, uma peça com
gobelinos, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada,
a que dá frente para Rodríguez Peña. Só um corredor, com sua maciça porta de
carvalho, separava essa parte da ala dianteira, onde havia um banheiro, a
cozinha, nossos quartos de dormir e o living
central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa
por um saguão com azulejos de majólica, e a porta-persiana dava para o living. De maneira que se entrava pelo
saguão, abria-se a porta-persiana e já se chegava ao living; tinha-se, dos lados, as portas dos nossos quartos e, à
frente, o corredor que levava à parte mais afastada; seguindo pelo corredor, chegava-se
à porta de carvalho e mais adiante se iniciava o outro lado da casa, ou então
se podia virar à esquerda, justamente antes da porta, e seguir por um corredor
mais estreito, que levava à cozinha e ao banheiro.
[...]
Recordarei sempre, com nitidez, porque foi simples e sem
circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando em seu quarto, eram oito da
noite e, de repente, eu me lembrei de pôr ao fogo a chaleirinha do mate. Fui
pelo corredor até chegar à porta entreaberta de carvalho, e dava volta ao
cotovelo que levava à cozinha quando escute algo na sala de jantar ou na
biblioteca. O som vinha impreciso e surdo, como o tombar de uma cadeira sobre o
tapete ou um abafado murmúrio de conversação. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou
um segundo depois, no fundo do corredor que vinha daquelas peças até a porta.
Atirei-me contra a porta antes que fosse demasiado tarde, fechei-a
violentamente apoiando o corpo; felizmente a chave estava do nosso lado e, além
disso, puxei o grande ferrolho para maior segurança.
Fui à cozinha, aqueci a chaleira e, quando voltei com a bandeja do
mate, disse a Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte
dos fundos.
Deixou cair o tricô e me olhou com os seus graves olhos cansados.
— Você tem certeza?
Disse que sim.
— Então – disse, recolhendo as agulhas – teremos que
viver neste lado.
Eu cevava o mate com muito cuidado, mas ela demorou um instante em
recomeçar o trabalho. Lembro-me de que tricotava um colete cinzento; eu gostava
desse colete.
Os primeiros dias nos pareceram penosos porque ambos havíamos
deixado na parte tomada muitas coisas que queríamos. Meus livros de leitura
francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene sentia falta de umas
toalhas, um par de chinelas que a abrigavam muito no inverno. Eu sentia falta do
meu cachimbo de zimbro e acho que Irene pensou em um vidro de hesperidina de
muitos anos. Com freqüência (mas isto somente aconteceu nos primeiros dias)
fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.
— Não está aqui.
E era mais uma coisa de tudo o que havíamos perdido no outro lado
da casa.
Mas também tivemos vantagens. A limpeza se simplificou tanto que ainda
que nos levantássemos muito tarde, às nove e meia, por exemplo, não eram onze e
já estávamos de braços cruzados. Irene se acostumou a ir comigo à cozinha e a me
ajudar a preparar o almoço. Pensamos bem, e decidimos isto: enquanto eu fazia o
almoço, Irene prepararia pratos frios para a noite. Alegramo-nos porque sempre
se torna incômodo ter de abandonar os quartos ao entardecer e se pôr a
cozinhar. Agora nos bastavam a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida
fria.
Irene estava contente porque lhe sobrava mais tempo para tricotar.
Eu andava um pouco desorientado por causa dos livros, mas, para não afligir
minha irmã, pus-me a examinar a coleção de selos de papai, e isso me serviu
para matar o tempo. Divertíamo-nos muito, cada um em suas coisas, quase sempre
reunidos no quarto de Irene, que era mais cômodo. Às vezes Irene dizia:
— Olhe este ponto que fiz. Não é um desenho de trevo?
Um instante depois era eu que lhe punha ante os olhos um
quadradinho de papel para que visse o valor de algum selo de Eupen e Malmédy.
Estávamos bem, e pouco a pouco começávamos a não pensar. Pode-se viver sem
pensar.
_______
Nota:
O conto "Casa Tomada" aparece em
um dos primeiros livros de Julio Cortázar, "Bestiário", de 1949.
Quem quiser ouvir a leitura do conto
gravada na voz do próprio Cortázar, acesse:
https://www.youtube.com/watch?time_continue=26&v=uGGOv3t3BMo
E uma análise interessante do texto está
disponível em:
http://valiteratura.blogspot.com/2010/10/conto-casa-tomada-julio-cortazar.html
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