A cidade em fuga, por Ana Teresa Jardim (mote)


A minha história começa em Ipanema, que você conhece. Mas qual? O bairro boêmio dos anos pós-guerra, o paraíso dos hippies?
A Ipanema que te peco para lembrar já tinha visto passar metade dos anos 50. Mas na minha percepção as épocas sempre trazem rastros indeléveis das anteriores. Tal vez eu me sinta assim por sempre ter convivido com pessoas de épocas separadas da minha por lapsos muito grandes de tempo. De modo que a atualidade nunca chegava completamente, ou o pelo menos chegava mais devagar.  
Estava sendo criada, naquele momento, a batida jazzística que misturava o samba ao som e à calma das marés, e a bossa nova era tocada em apartamentos térreos nos prédios de três andares em Ipanema. Brisas noturnas sopravam suavemente da praia ali tão perto, onde se podia caminhar descalços o mundo de Julia e Max tinha o chão atapetado, cigarreiras, tafetá em pó compacto.
A pequena cobertura na rua Joaquim Nabuco tinha no chão da sala um tapete cor de coral, que neutralizava com sua tonalidade quente a austeridade da madeira escura dos moveis coloniais. Portas de vidro se abriam para um terraço não muito grande, no qual a mesa com tampo de vidro e as cadeiras de ferro pintadas de branco eram um elemento meramente decorativo. Não se costumava fazer as refeições ao ar livre, como hoje. O terraço era, então, uma atração misteriosa e um pouco vazia, que todos visitavam cheios de admiração, mas a qual voltavam as costas em busca dos confortos da sala, seus sofás e cinzeiros.
O mar rodeava os quatro contos de apartamento onde morávamos Júlia, Max – meus pais-, eu e meus irmãos André e Sophia. Para nós, crianças, o terraço era nosso território privilegiado, mastro de onde avistávamos terra e nau que singrava nossas aguas. Esquadrinhávamos o horizonte com olhos apertados, implacáveis. Um dia, em quanto a babá não vinha da padaria, subimos na escada para espionar como viviam os vizinhos. E o que vimos, no terraço ao lado foi uma tenda de acampar ao ar livre.
Alguns dias depois, vimos entrar no elevador uma senhora vestindo lima roupa de safári cáqui. Eletrizados, preparávamo-nos para abordá-la, quando o elevador despejou-nos na escuridão fria do nosso hall. A exploradora deslizou a chave na fechadura da sua porta e desapareceu.
Julia trabalhava num antiquário. Max era advogado, numa época em que a advocacia era uma profissão glamourosa. No quarto que utilizava como escritório em casa havia uma mesa de jacarandá, com um retângulo de couro no tampo, debruado de sutache, que servia para apoiar os papéis. No quarto de dormir, dentro do guarda-roupa, doze gavetas finíssimas guardavam, uma a uma, as camisas impecavelmente engomadas. Em cima da cômoda estavam a calcadeira de chifre, as abotoaduras, um clipe de ouro para prender cédulas e o anel de rubi.
A revolução, no entanto, já batia à porta daquele mundo sereno. Todos os dias, mal as crianças eram deixadas nas mãos cuidadosas e uniformizadas de babá, as coisa começavam a se revolver dentro do pequeno apartamento. Elza descia um minuto, fisgada pelo apelo do namorado ex-pracinha, e nos lançávamos ao armário de remédios, fingindo que o banheiro era uma loja de balas, chupando pastilhas, tabletes, comprimidos. Que pestes! E onde estava a mãe numa hora destas?
Júlia, que tinha um olhar pousado no futuro, misturava ás antiguidades peças do artesanato brasileiro, e a loja ficava mais leve, com as peneiras e cestos dando vida aos móveis coloniais. Havia encomendado naquela manhã colchas feitas por tecedoras do interior, e enfeitado com flores secas os vasos de louca holandesa. O patrão de Júlia, um francês que esperava ficar rico decorando os lares da alta classe média carioca, sorria secretamente satisfeito e dizia que o trabalho de Júlia era uma arte quando ela mencionava aumento de salário. É compreensível, por tanto, não acham? Que Júlia desconhecesse as travessuras cometidas na sua ausência.
Júlia termina de desdobrar e estender tapetes de sisal, e está de joelhos sob uma dessa alta e maciça, daqueles que pertenciam ás cozinhas das fazendas. Enquanto isso, as crianças brincam de circo no terraço, o parapeito é a corda bamba, e o chão não é rede de segurança. Começava uma época difícil para as mães, com a culpa encontrando o seu caminho e a psicanálise ganhando o mundo, desprendida já dos seus primórdios vienenses. Júlia admirava os padrões de palha brasileira, a babá tentava defender seu direito a um mínimo de vida amorosa, e as fadas madrinhas encarregavam-se de proteger os pequeninos de sei próprios.
Sobrevivemos eu, André e Sophia. Aqui está a foto de nós juntos, sorrindo, de pé contra no muro que fazia fronteira com a casa da exploradora. Eu no meio, porque gostava de abranger tudo – nada de pose em escadinha. Meus dois irmãos seguros cada um por uma mão. André, o caçula, se dobra de tanto rir – sempre foi completamente dominado pelas emoções. Sophia tem uns olhos frios, delicados. Franjas rentes e despenteados, um dois três – o muro e um sol a pino, contraindicado para fotografias.


Editora 7 Letras, 1997

(Mote vencedor lido Teresa Pique para o encontro de 09/10/2018)




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz