A Criatura, de Guilherme Preger
Bom dia, Senhores.
Estamos reunidos nesta sala para decidir os requisitos estruturais de nosso
novo Presidente.
Desde que a Humanidade
deu o grande passo da Robótica Quântica, nós não temos mais necessidade de
recorrer ao anacrônico método democrático para a escolha de nossos governantes.
Com efeito, durante o
período Democrático, que antecedeu o período Caótico, a humanidade decidia
através de mecanismos seletivos denominados “eleições” quais seriam seus
governantes. Tais mecanismos eram custosos financeiramente e dispendiam
períodos extremamente alongados de tempo. Tempo que poderia ser melhor
utilizado na invenção de novos dispositivos de criatividade quântica. Não raro,
tais períodos levavam a conflitos que geravam tensões e só podiam ser
resolvidos pela guerra.
Ninguém admira, portanto,
que após o período Democrático sobreveio o período Caótico. Durante esse
excessivo e sofrido período, a Humanidade perdeu seu rumo e degenerou-se organicamente
na procura da mera sobrevivência.
Graças a nossas
próteses inteligentes, no entanto, conseguimos superar tal período tenebroso e
chegamos, enfim, a Era da Nova Política: a Robôcracia. Agora não mais elegemos
nossos governantes, mas diretamente os criamos. Tudo virou uma questão pura e
simples de encontrar um bom projeto.
Assim, passamos da Era da Representação para a Era da Criatividade.
Devido aos desafios
enfrentados pela Nova Política, os governantes precisam ser periodicamente
redesenhados para que nos guiem pelo bom caminho da Vontade Geral. A melhor
forma de ser bem governado é criar um Presidente com habilidades e capacidades
que facilitem o entendimento consensual de sua liderança cibernética.
Creio que todos nós estamos
de acordo que o novo Presidente deverá ser íntegro. Apesar de ser o produto de
um rearranjo de dispositivos já utilizados em presidentes anteriores, sua
excelentíssima corporeidade deverá aparecer aos olhos dos Proletantes como Una,
Sintética e não como um remendo.
É mister que tenha um
cérebro eletronicamente ético. Por isso, desenvolvemos versões atualizadas de
algoritmos mentais e software cerebral para permitir seu equilíbrio decisional.
Frente a questões de caráter porventura indecidíveis, nosso Presidente será
capaz de processar tomadas de decisão ultrarrápidas. Por isso, em sua
biblioteca interna adicionamos as versões digitalizadas das principais obras
filosóficas da cultura ocidental, incluindo os livros sagrados das religiões
extintas. Também determinaremos as condições de contorno de seus programas para
cortar a possibilidade de loops
infinitos. Assim, garantimos a eficiência de sua maquinaria ética.
Mais importante do que
implantar software cerebral, será dotar nosso Presidente de habilidades
retóricas avançadas. Ao longo das gerações de Presidentes robóticos, vimos
aperfeiçoando suas habilidades expositivas e sua capacidade ilocucional. A
versão atualizada de sua prótese fabular já foi testada para uma série de
situações expositivas diversas. Nosso novo Presidente será capaz de
convencimento prático da mente de um Proletante de QI médio em algo em torno de
cinco minutos, um resultado bastante razoável.
Importante virá a ser a
segurança de suas posições. Nada pior do que um governante inseguro.
Desenvolvemos para sua prótese facial uma quantidade suficiente de expressões
que denotam segurança. Nosso novo presidente tomará decisões duras sem
pestanejar. Por exemplo, ele terá que decidir de uma vez por todas o que fazer
com as quadrilhas organizadas dos Proletantes. Nossa visão é a de que muitas
dessas quadrilhas deverão ser rapidamente exterminadas. Porém, nós, os gestores
da Robôcracia, não temos mandato para tomar decisões tão graves. Apenas os
Presidentes têm autoridade moral e legitimidade para comandos importantes desse
nível. Por isso, urge que possamos completar o redesenho de suas
características robóticas o quanto antes.
É claro que todos os
obstáculos poderão ser superados. Pois estamos numa época não mais de escolhas
demoradas e anacrônicas, baseadas em critérios falíveis. O desenvolvimento da
Robótica Quântica nos deixou num novo patamar de maturidade institucional. A
falida era da tentativa e erro terminou. A era de intermináveis discussões
acabou. Lembremos que enquanto essas terríveis discussões eram realizadas,
milhões de pessoas sofriam pela insegurança e pela vulnerabilidade.
Hoje é difícil imaginar
o que foi o momento antigo das consultas e deliberações para alcançar leis que
eram extremamente duvidosas e falíveis e por isso mesmo, nenhum juiz
respeitava. Imaginem o tempo perdido na escrita de Constituições que em poucos
anos eram desrespeitadas. A era da Criatividade Quântica veio superar tudo
isso. Agora a Humanidade pode inventar com exatidão suas próprias leis na forma
de algoritmos matemáticos. E os programas sofisticados a que nós temos acesso
nos permitem desenhar e construir uma figura absolutamente rigorosa de
governante, através da conjunção adequada de técnica e ética. O que diriam os
antigos filósofos que sonharam a República Ideal diante de seu sonho tornado
real, palavra por palavra, número por número, peça por peça.
Guilherme Preger é um fabulador especulativo
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