O Terraço, de Guilherme Preger



No meu emprego, aumentaram as horas de trabalho desde a última crise. A explicação que os patrões deram é que, como caiu o preço dos produtos, tornou-se necessário produzir mais para compensar a queda de receita. O resultado é que estamos trabalhando pelo menos duas horas a mais diariamente. Se vendemos mais, aumentam as comissões. O problema é que estamos em crise e as vendas caíram, e mesmo produzindo mais, os consumidores estão comprando menos. Parece contraditório, mas os patrões disseram que todo o excedente de produção está sendo guardado em armazéns confiáveis. Assim, quando as vendas voltarem a aumentar, poderemos trabalhar menos e compensar o tempo trabalhado a mais. Não entendemos muito bem essa história de compensação, mas aceitamos assim mesmo. Todos nós precisamos de trabalho. É melhor do que mendigar nas ruas.
Todo dia acordo muito cedo para chegar ao trabalho no horário certo para não ser descontado. Todos os trabalhadores têm uma tolerância de 15 minutos para passar o crachá na catraca e eu sempre uso meu tempo de tolerância inteiro. Sento em minha cadeira e ligo o computador. As cores digitais em minha tela aparecem como um novo clarão do dia. Entro na caixa postal do trabalho para ver as mensagens. Vou apagando todas as mensagens de spam. Dezenas delas chegam todos os dias. Gosto muito de deletar mensagens de spam. Sobram umas duas ou três mensagens úteis, porém deixo algumas mensagens sem apagar para fingir ao meu chefe que estou lendo mensagens importantes. Quanto mais mensagens importantes, mas importante é o seu trabalho.
Depois de ler todas as mensagens, aí tenho que começar a escrever meus relatórios. Minha função em meu emprego é escrever relatórios. Tenho em média um ou dois relatórios para escrever a cada dia de trabalho. Como domino a arte da escrita, tenho facilidade para realizar essa tarefa. Porém, se termino logo a missão de escrever meus relatórios, meu chefe me passa outros relatórios. Como tenho bastante tempo de trabalho diário, decido usar a manhã toda para escrever um deles e a tarde toda para escrever outro. Os relatórios têm em média quatro ou cinco parágrafos, de modo que posso escrever um parágrafo por hora. Assim um dia inteiro se passa sem ser chateado pelo meu chefe, que fica feliz em me ver ocupado.
Na verdade, escrevo cada relatório em cerca de quinze ou vinte minutos e no restante do tempo bato aleatoriamente no teclado do computador. Às vezes abro um site de internet como se estivesse procurando uma informação para preencher o relatório. Meu chefe gosta de ver funcionários procurando conhecimento na internet. No entanto, visito sites de notícias ou artigos que não têm qualquer relação com os relatórios. Faço isso para passar o tempo mais rapidamente.
Minha luta diária é contra o sono. Tenho pouco tempo livre e quando chega a noite, em minha casa, pego alguns livros para ler ou escrevo trechos de meu novo romance. Vou nisso até mais tarde, apesar de acordar muito cedo. Escrever à noite me dá prazer. É quando minha imaginação está mais acesa. Mas quando estou no escritório de dia, digitando meus relatórios, sinto sono, muito sono. E olhar a tela do computador me dá grande vontade de dormir. Muitas vezes fecho os olhos e finjo que estou pensando e digitando. Nos pequenos cochilos que experimento discretamente às vezes até caio em sonhos. 
Há um sofá em minha sala, onde os visitantes se sentam esperando a vez de falar com o chefe. Por diversas vezes já olhei para aquele sofá como um boi olha para uma sombra de árvore num pasto calcinado pela luz do sol. Mas se me sento ou deito naquele sofá, meu chefe vai encontrar um motivo para me mandar embora.
Uma vez estava com tanto sono que mal me aguentava em pé. Entrei pelas escadas de incêndio procurando um lugar para me sentar. Mas fiquei com medo de aparecer alguém. Então fui subindo as escadas. Nunca tinha ido até a cobertura do edifício de minha firma. No último andar, encontrei uma porta fechada. Imaginei inicialmente que estaria trancada, mas surpreendentemente consegui girar a fechadura e a porta se abriu. 
No terraço, vislumbrei um pequeno jardim sob um telhado de madeira. No centro do jardim havia uma pequena fonte de água com um chafariz. Na fonte alguns peixinhos coloridos nadavam. Havia também uma mesa entre algumas cadeiras. No fundo, havia um sofá com uma manta belíssima, de estamparia com mosaicos coloridos. No sofá havia almofadas também estampadas.  Ventava um ar frio e o fluxo da água do chafariz dava a impressão de um regato a correr docemente. Meu sono venceu o medo de ser descoberto num lugar proibido. Deitei no sofá e adormeci.
Devo ter dormido por uma hora, mais ou menos. Depois desci, imprimi o relatório que já tinha terminado e coloquei na mesa do chefe. Ele leu o relatório, disse que estava muito bom e, como de praxe, me pediu para corrigir alguns trechos. Eu corrigi e entreguei. Já era hora de ir embora.  
E assim tem sido nos últimos meses. Todo dia depois do almoço, dou uma saída pela escada de incêndio e entro no terraço, me deito no sofá e adormeço. Nunca ninguém apareceu por lá e nunca alguém se referiu a tal jardim na cobertura. Outro dia, por curiosidade, perguntei a meu chefe se ele sabia quem ocupava o andar superior. Ele me disse que ninguém. Falou que na cobertura do edifício havia apenas a casa de máquinas dos elevadores. Eu disse que era uma pena, que o edifício deveria ter um terraço, pois a vista deveria ser muito bonita. Ele concordou ao mesmo tempo que me pediu atenção para terminar o relatório antes do fim do expediente. Eu respondi que com certeza terminaria, que ele não se preocupasse, sem esclarecer que já o havia terminado desde aquela manhã. 

Conto vencedor do encontro de 05/09/2017


Guilherme Preger é escritor contragolpista



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