Mote do encontro 24/02/15



Texto lido por Maurício Gouveia

Deixa Comigo




Como naquela cidade nada fica a mais de cinco minutos de carro, foi fácil, com um táxi, encontrar-me diante da senhora, ou senhorita Schloss, ou Blitz, exatamente às cinco  e meia. Esperava não ser considerado informal demais por estar sem paletó e com as mangas da camisa dobradas acima do cotovelo, porém tinha resolvido deixar o paletó. O clima estava cada vez mais quente.
Ela era uma doce velhinha coquete. Tinha cabelos grisalhos e olhar bondoso. Usava o cabelo cuidadosamente repartido em duas metades, preso atrás num coque. Para minha surpresa não vestia roupas negras ; usava uma blusa branca e uma saia florida. Precisava de óculos, mas não os colocara. Recebeu-me com grande amabilidade e me fez sentar numa cadeira, introduzida no país por Hernandarias junto com o gado, e me ofereceu com copo de chá. Recusei com firmeza.
“Não, senhorita Shnagg; não se preocupe. Tomei muito café”, respondi.
Já havia resolvido, mal a vi, recusar qualquer bebida; essas velhinhas tão angelicais costumam ter arsênico no armarinho do banheiro.
“Uma tacinha de licor?”, insistiu.
“Nada, muito obrigado”, respondi; e notei que se chateava. Isso não convinha aos meus fins; pareceu-me oportuno lhe explicar que jamais pudera provar álcool porque tinha sofrido na própria carne a desgraça de ter um dipsômano na família, meu próprio pai”, estava dizendo, mas a vi se entristecer demasiado, fiz um gesto de indiferença. “Você sabe como são essas coisas. Em todo caso, aceitaria um copo d´água”.
Na água eu poderia detectar qualquer sabor estranho.
Saiu, e voltou em seguida com um copo longo sobre um pratinho. Sentou-se diante de mim, toda ouvidos, e fui lhe contando sobre minha investigação detalhadamente, incluindo a eventualidade de que Juan Pérez talvez fosse um pseudônimo, uma mulher ainda por cima. Ela poderia relembrar a década de sessenta?
Era uma mulher inteligente e sensível, e provavelmente não teria muitas ocasiões de falar com alguém que a escutasse e a compreendesse. Falou e falou, remontando aos anos sessenta, cinqüenta, quarenta. Um estado similar ao coma me invadiu, e tentei sair dele fazendo um inventário da sala sobrecarregada de objetos; o maior era um piano, o menor uma formiga que percorria meu braço. Eu a olhava fascinado, esperando que me picasse, sem forças para sacudi-la.
Navegava num pedalinho por um lago sereno como um prato de sopa. Alguém tocava mandolina, e lá no céu deslizavam lentamente, muito lentamente, nuvens brancas feito algodão. Nunca soube como apareceram o pigmeu e as luvas feitas de borracha. Fazia silêncio. A senhorita Screem tinha lágrimas nos olhos. Eu também, apesar de que certamente não pelos mesmos motivos.
“Eram outros tempos”, falei com simpatia, afogando um bocejo. Dissimuladamente, olhei a hora. Seis e quarenta e cinco.
Levantei de um salto.
“Posso voltar a incomodá-la amanhã?”, perguntei, pois não recolhera nada útil aos meus fins. “Você me fez perder a noção do tempo”.
Sugeri que ela desse conferências, para que os jovens de hoje, corrompidos pela droga e pelo sexo, alcançassem uma luz de esperança. Valores, senhorita Schloss, estamos perdendo valores. Porém não podia ficar um pouco mais; esperavam-me no canal fazia quinze minutos, para gravar uma entrevista, e não queria deixar de atendê-los. Tomei suas mãos e as sacudi ternamente. Ela sorriu, encantada.
“Espero-o amanhã, jovem. Na mesma hora”, falou comovida.

(...)

Continuei chorando até que recordei subitamente do encontro. Já estava ficando tarde. Corri até o banheiro para lavar a cara e os olhos e assoar o nariz com papel higiênico., e quando vi no espelho os olhos avermelhados e o nariz inchado me deu um ataque de riso, mas sério. Evidentemente necessitava descarregar a histeria.

(...)

Tomei um táxi e cheguei às seis, meia hora atrasado.
Não me tratou severamente, porém sua preocupação era evidente. Pedi desculpas; o calor e o cansaço tinham me feito dormir em excesso. Enquanto eu estava sentado, ela me trouxe o copo d´água, como se fosse um rito instaurado séculos atrás. Sentou-se, olhou para mim com serenidade nos olhos, e sentenciou:
“Você esteve chorando”.
Temi que começasse outra vez a risada histérica. Torci a boca e confessei que, com efeito, estivera chorando.
“Minha esposa me abandonou faz uns meses”, disse, tentando sentir uma profunda autocompaixão. “Fugiu com um traficante búlgaro para a Venezuela. Às vezes sinto saudades dela”.
Duas lágrimas umedeceram minhas bochechas. Os fatos essenciais estavam corretos, mas os enfeitara um pouco; as pessoas gostam de detalhes exóticos. O homem não era traficante, mas químico; não era búlgaro, apenas vulgar; não vivia em Venezuela, mas em Montevidéu. Tampouco minha mulher me abandonara exatamente, nem fugira; foi uma separação longamente discutida, e em comum acordo.
A anciã começou a falar suavemente generalidades e máximas cujos objetivos eram dissipar minha angústia, e depois foi resvalando para velhos temas, baixando da década de quarenta até a de trinta, e dali à de vinte. Fez em mim uma lavagem cerebral completa, e depois funilaria e pintura. Fiquei manso como um cordeiro. Consegui reencarnar penosamente às sete e meia, sem recordar as razões que me haviam levado ali.

LEVRERO, Mario. Deixa Comigo. Tradução: Joca Reiners Terron. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.




Mario Levrero nasceu em 1940 em Montevidéu, onde morreu em 2004. Escritor, fotógrafo, livreiro, chefe de redação de revista, autor de textos humorísticos e histórias em quadrinhos, Levrero pertence à categoria dos “raros”, como são conhecidos alguns escritores uruguaios.

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