As Mulheres do General - Anderson Câmara



As Mulheres do General

O cheiro de madeira queimada atiçava a fome da moça, em sua terra natal era sinal de que a refeição estava a ser servida. O céu azul estava quase limpo, o sol estava escondido atrás de uma nuvem brilhante, o que aliviava o calor do meio dia; seria perfeito para descansar a fadiga da longa viagem que terminara apenas duas horas mais cedo. Mas não havia refeição, não havia sombra de um telhado ou a maciez de almofadas. O cheiro de madeira queimada vinha junto com o cheiro do sangue sob o sol, da areia fina erguida pelo vento, e aquilo matava qualquer apetite. Sobre a colina, ela via o campo abaixo repleto de homens de armadura e longas armas nas mãos; alguns de pé, maior parte deles caídos. Dilacerados, couraças rasgadas, costelas retorcidas para dentro e para fora, sangue escurecendo a areia que cobria todo o terreno até o horizonte marcado de montanhas de pedra nua. Armas eretas fincadas em corpos, mãos erguidas em súplicas ignoradas e carros e cavalos mortos despontavam dentre a massa de cadáveres a escurecer o chão reluzente.
Para uma donzela que ainda não completara duas décadas de vida, acostumada aos hábitos domésticos, poderia ser uma contemplação desagradável e nauseante, mas não para esta moça. Os campos de batalha eram parte de seu dia, os sons de júbilo da vitória por várias vezes a despertava de manhã, e as tarefas que observava a mãe executar com esmero e amor eram limpar o sangue na armadura de seu pai e tratar suas feridas.
E ali, sentadas à entrada da tenda armada sobre a colina, cercadas de guardas por perto e cinco pelotões nos arredores, as duas mulheres tinham os olhos nas faces dos vivos que permeavam os mortos. Buscando reconhecê-lo, o homem de maior honra naquele exército que havia muito tempo saía vitorioso em cada terra que invadia. Via seus homens voltando invictos, carregando os espólios sem fazer prisioneiros. Entregavam-se a essa taciturna apreensão ao fim de cada batalha que o general começava, e quando finalmente a imagem do guerreiro surgia se aproximando da tenda, a brutalidade do bárbaro dando lugar à ternura do pai, elas suspiravam aliviadas. A mãe sempre se alvoroçava com cada ferida que o pai trazia nos braços nus ou no rosto recoberto de fúria e velhas cicatrizes; e se estivesse envenenado, e se não parasse de sangrar?
Enquanto esperavam que o general se destacasse da multidão que andava na direção da colina, o acampamento fora armado atrás desta, a mãe olhou os montes secos e feios no horizonte, depois olhou para um ponto do horizonte onde via uma fenda na muralha pela qual pouco se podia ver o verde de uma floresta.
- Para onde teu pai deseja ir? – ela perguntou.
- Ele quer fazer com que os homens das montanhas desçam todos contra ele. – respondeu a filha, escutara-o conversando com seus conselheiros alguns dias antes. – Mandou já algumas tropas para provoca-los e fazê-los descer as montanhas, não quer lutar nas encostas.
- É certo que não... estaria em desvantagem. Mas enquanto ele não tirar os olhos destes montes, vamos viver essa secura do deserto.
- Papai luta bem nas areias.
A mãe, ainda sem tirar os olhos dos vivos, soltou um som de desprezo.
- Enquanto isso vivemos neste calor terrível. Ele poderia muito bem ir logo para a passagem. Viajaríamos direto, escondidos pela mata, e logo ele conquistaria a capital.
- Ele não quer deixar nenhum inimigo às costas, mãe.
- Eu sei, mas se ele tiver as fortalezas da capital, eles não vão ser muito problema. – ela repentinamente se agitou, encontrara a imagem de seu marido começando a subir a colina logo abaixo delas. Então acrescentou. – E nós poderíamos dormir melhor e tomar um banho com ervas.
A moça ponderou. Costumava ser muito mais tolerante que a mãe, mas de fato sentia falta de um lugar fixo. Estavam tão perto do objetivo do pai, mas ele tinha planos detalhistas a cumprir.
- Então convença-o, mãe. – disse a menina. – Eu já o pedi para não nos rodear desses desprezíveis prisioneiros de guerra. Se eu quiser fazê-lo mudar de ideia outra vez tão cedo, talvez ele não queira fazer muito por mim mais tarde.
A mãe se levantou quando as fendas na armadura e as lascas perdidas na espada do general eram perfeitamente visíveis.

- Está bem... Fique longe da tenda hoje à noite.

  
Conto escrito para o encontro de 27/01/2015


Desde os nove anos, Anderson Câmara já era apaixonado por histórias que fugissem um pouco da realidade. Os quadrinhos e os filmes dos anos noventa eram seu refúgio durante a infância na Baixada Fluminense. Filho de pais nordestinos, aprendeu com eles os valores da vida e a beleza da arte. Tendo como exemplo o trabalho duro do pai e a criatividade da mãe, durante a adolescência começou a criar as próprias histórias indo publicar seis anos após o primeiro conto.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz