O cubo, por Camilla Agostini

O Cubo


Camilla Agostini



Nasceu para ser um cubo. Mas era também de gelo. Vivia nas bandejas plásticas de congelador, próprias para cubos. Às vezes vinha refrescar um suco. Era um prazer especial mergulhar naquele sumo morno com suas fácies geladas, quando espirravam gotas para fora do copo. Depois rodar de um lado para o outro dentro da boca humana, empurrado pela língua contra o macio da bochecha. Fazê-la gelar e então ser cuspido no vazio do copo. Quando não passava de um resto. Voltava correndo para a bandeja antes de desvanecer. Pedia que lhe completassem de água e que lhe deixassem quieto no recinto gelado até que pudesse ser útil novamente.

Até um dia que foi servido numa mesa bonita e escapou sobre a toalha ao lado de uma vela acesa. Ela era muito alta, então não fazia mal. O cubo de gelo, com suas paredes ainda em riste, admirado confessou:

– Sua chama é bonita. Estou cansado de sempre me esvanecer. Você também passa por isso?

– Não sei do que está falando, me acenderam agora a pouco. Mas você não está com frio, hein?

– Quando me aqueço, desapareço. Então volto ao exílio das coisas geladas, duras e que não se movem.

A vela então sugeriu que ele arranjasse pés e mãos humanos, e também um coração. Mantendo-os aquecidos seguiria mais sossegado. Mas como um cubo de gelo arranjaria essa porção de humanidade? Procurou então um escultor.

O mestre artesão analisou o caso com atenção e começou meticulosamente a lapidar a pequena pedra. Mas as pernas e braços seriam delicados demais para um cubo daquele tamanho, então fez pequeníssimos implantes de madeira. Abriu um espaço no peito e colocou uma bolinha de argila. Graças à umidade constante acabava ficando ali sempre girando.

Então o mestre escultor foi até a estante com sua pequena criatura, escolheu um livro e disse:

– Esse é Galeano. Ele diz uma coisa bonita sobre como nós somos fogueirinhas aqui na terra.

E ouviu da criatura ainda na sua mão:

– Mas eu sou um cubo de gelo!

– Bem, um cubo você já não é mais.


Conto vencedor do encontro de 29/06/2021
Camilla Agostini é carioca, arqueóloga e historiadora, professora na UERJ. Integra o Núcleo de Estudos de Cultura Material - NECM/UERJ. Participa do Clube da Leitura desde janeiro de 2017. https://camillariobr.wixsite.com/vagalume/in%C3%ADcio

Comentários

  1. Gostei do conto e espero estar com você no lançamento de Urdiduras. Fernando Carriço

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