O sol de Breda, por Arturo Perez Reverte

O Sol de  Breda- de Arturo Perez Reverte, Companhia das Letras, 2010, SP


Assim foi como tudo se deu, na noite em que Sebastián Copons degolou o holandês ferido e eu afastei a mão do capitão Alatriste do meu ombro. E assim foi também como franqueei, quase sem perceber, aquela estranha linha de sombra que todo homem lúcido termina cruzando mais cedo ou mais tarde. Ali, em pé e sozinho ante o cadáver, comecei a enxergar o mundo de maneira muito diferente. E me vi na posse de uma verdade terrível, que até aquele momento só pudera intuir no olhar glauco do capitão Alatriste: quem mata de longe ignora tudo sobre o ato de matar. Quem mata de longe não extrai nenhuma lição da vida nem da morte: não arrisca, não mancha as mãos de sangue, não ouve a respiração do adversário, nem lê o horror, a coragem ou a indiferença em seus olhos. Quem mata de longe não põe à prova seu braço, nem seu coração, nem sua consciência, nem cria fantasmas que depois ressurgirão à noite, pontuais no encontro, pelo resto da vida. Quem mata de longe é um velhaco que encomenda a outros a tarefa suja e terrível que lhe é própria. 


Quem mata de longe é pior que os outros homens, porque desconhece a cólera, e o ódio, e a vingança, e a paixão terrível da carne e do sangue em contato com o aço; mas também ignora a piedade e o remorso. Por isso, quem mata de longe não sabe o que perde. 


(Mote lido por Cynthia Dorneles para o encontro de 26/01/2021)


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