Prólogo, por Susan Sontag


É a entrada do mercado de pulgas. Não se paga ingresso. É grátis. Gente mal ajambrada. Vulpinos, brincalhões. Por que entrar? O que você espera ver? Estou vendo. Estou constatando o que há no mundo. O que sobrou.  O que foi descartado. O que não se quer mais. O que deve ser  sacrificado. O que alguém pensou que poderia interessar a outro alguém. Mas é lixo. Se existe algo aqui ou ali, já foi peneirado. Mas lá pode haver algo valioso. Não exatamente valioso. Mas algo que eu poderia querer. Querer resgatar. Algo que me fale. Que fale aos meus anseios.Que fale com alguém, fale de algo. Ah....
Por que entrar? Será que você tem todo esse tempo livre? Você vai olhar. Vai passear. Vai perder a noção do tempo. Acha que tem bastante tempo. Sempre leva mais tempo do que você pensa. Daí você vai se atrasar. Ficará aborrecida com você mesma. Quererá ficar. Sentirá tentação. Sentirá aversão. As coisas são encardidas. Algumas quebradas. Mal remendadas ou sem remendo nenhum. Elas me falarão de paixões, de caprichos que não preciso conhecer. Preciso. Ah, não. De nada disso eu preciso. Algumas coisas acariciarei com os olhos. Outras preciso pegar na mão, afagar. Enquanto sou observada, com perícia, pelo vendedor. Não sou ladra. E, provavelmente, não sou compradora.
Por que entrar. Só de brincadeira. Um jogo de reconhecimentos. Saber o que,  e saber quanto era, quanto deveria ser, quanto será. Mas talvez não para fazer uma oferta, regatear, adquirir. Só para olhar. Para flanar. Sinto o coração leve. Não tenho nada em mente.
Por que entrar? Há muitos lugares como este. Um campo, uma praça, uma rua coberta, um arsenal, um estacionamento, um píer. Isso aqui poderia ser em qualquer lugar,  embora por acaso seja aqui. Estará cheio de todos os lugares. Mas eu estaria entrando aqui. De jeans, blusa de seda e tênis. Manhattan, primavera de 1992.Uma experiência degradada de  pura possibilidade. Este aqui com seus cartões-postais de estrelas do cinema, aquela ali com sua banca de anéis Navajo, este com suas jaquetas de aviador da Segunda Guerra, aquele com suas facas. Os carrinhos  em miniatura deste aqui, os pratos de cristal daquela ali, ele com as cadeiras de ratã deste, ela com suas cartolas, o  outro com as moedas romanas, e ali.... uma pedra preciosa, um tesouro. Poderia acontecer, e eu poderia ver, poderia querer. Poderia comprar para dar de presente, sim, para outra pessoa. Pelo menos, ficaria sabendo que aquilo existe, e acabou aparecendo aqui.
Por que entrar? Já há o suficiente? Eu poderia descobrir que não está aqui. O que quer que seja, muitas vezes não tenho certeza, poderia recolocá-lo na banca. O desejo me conduz. Digo a mim mesma o que eu quero ouvir. Sim, há o suficiente.
E entro.


Extraído   do livro  O Amante do Vulcão de Susan Sontag

(Trecho lido por Octavio Rosario para o encontro de 18/02/2020)


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