Mote do encontro 09/12
texto lido por Fernando Sousa Andrade
Dez centímetros acima do chão
Não fale com fantasma
Entre
oito da manhã e dez da noite a porta de vidro fica liberada para entradas e
saídas. O movimento é incompatível com a localização, uma esquina mansa do
centro da cidade, e incompatível também com o espaço interno, um salão estreito
e pouco profundo. Um café incompatível, é isso encaixado entre dois espigões
numa fenda mínima, mínima. E se eu disser que a porta range serei pouco
preciso: o rangido fará de você, entrante, o centro das atenções. Ninguém chega
sorrateiro ao Tulipa Dourada, birosca mais antiga da região, ponto reverenciado
por artistas sem palco e sem banda, e ainda hoje é assim, refúgio cultuado por
velhotes sem ocupação e por turistas bem informados, que ficam extasiados com a
atmosfera despencada do estabelecimento. Bacana visitar o Tulipa, bem bacana,
você precisa aparecer por lá. É só descer daqui a duas estações e me seguir, ou
perguntar para qualquer um na vizinhança, todo mundo sabe onde fica. Você
precisa tirar fotos com o afresco ao fundo. O afresco reproduz uma noite típica
do Tulipa de outras eras, e tem mais de meio século de idade, obra de um
frequentador célebre, não lembro qual, e é um tanto tosco em matéria de
refinamento artístico, sim, mas carrega uma vibração nostálgica ao sugerir
tamanha alegria, moças cantando num coro, insinuantes, por mais ridículo e
antiquado que possa soar o adjetivo. Acompanhadas por um senhorzinho à pianola,
e homens bem- vestidos que sopram seus instrumentos para uma turma de boêmios
às gargalhadas. E o cenário da fuzarca pintada na parede está fielmente
preservado, tudo ali, em três dimensões, para o deleite dos novos
frequentadores: estão ali as mesas com tampo de mármore, as cadeiras de madeira
escura, as fotos que forram as paredes laterais, e até mesmo a pianola coberta
por um pano desbotado, atestando que a história retratada com tinta pode ter
sido história acontecida de fato, e servindo de passatempo aos turistas que
tentam identificar os objetos reais na pintura. Você precisa conhecer. É
inevitável imaginar alguns velhotes que tomam conhaque nas mesinhas individuais
tenham de fato, presenciado aquela fase de ouro e música. Se sim, agora velam
serenamente o descanso da espelunca. O clique enunciado nos guias turísticos
não pode ser mais exato, juro: visitar o Tulipa é fazer uma viagem ao passado.
Entrei ali pela primeira vez em uma dessas manhãs geladas e chuviscantes. Eu
estava obviamente pouco agasalhado, minha jaqueta de brim úmida da garoa.
Entrei rápido, afastando qualquer um que bloqueasse meu caminho em direção de
um café quente e forte. Uma casal de turistas apontou os olhos claros na minha
direção e me recebeu com um par de daqueles sorrisos meio bobos que os casais nômades
de origem escandinava carregam o tempo todo, junto com as camisas de linho
surradas e as calças caqui que se transformavam em bermudas com um puxar de
zíper. Uma velha que ruminava um alimento indecifrável também eriçou o olho
esquerdo e talvez tenha me saudado com a cabeça. Acho que foi sim, uma espécie
de saudação. O homem de meia idade que atende ao balcão bateu as mãos no tampo
e perguntou o que ia ser, assim mesmo o que ia ser hoje?
CAFIERO,
Flávio. Dez centímetros acima do chão.
São Paulo: Cosac Naify, 2014.
Flavio
Cafiero é carioca e vive na cidade de São Paulo. Formado em comunicação social
pela UFRJ, é também ator, dramaturgo e roteirista de cinema e televisão. Seu
romance de estreia, O frio aqui fora (Cosac Naify, 2013), foi finalista dos
prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti (2014). Dez centímetros acima do chão
(Cosac Naify 2014), livro vencedor do prêmio Cidade de Belo Horizonte (2013), é
sua primeira coletânea de contos.
Comentários
Postar um comentário