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Mostrando postagens de fevereiro, 2017

Diálogo, por Guilherme Preger

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Diálogo ( cena com dois interlocutores: D e E durante o bloco Escravos da Mauá no domingo antes do carnaval ). D- O que você quer dizer com “Feijoada é de esquerda”? Eu adoro feijoada, quer dizer que eu sou de esquerda? E- Depende da maneira como você come, não da feijoada. Esquerda e direita são posições, não são essências. D- Explica melhor isso, eu detesto esse pedantismo da “esquerda filosófica” que acha que todo mundo de direita é imbecil.  E- Bem, eu acho que quem luta para ter menos direitos só pode ser imbecil. Mas deixa isso para lá,  pois nosso assunto é a feijoada. A feijoada, como coisa-em-si, não é de esquerda. É verdade que era comida de escravos, era a alimentação básica dos negros escravizados: feijão preto, farinha de mandioca, laranjas e bananas, além de carnes secas e toucinhos... D- Só o fato de ser comida de escravos faz ser de esquerda a feijoada? Não havia escravos de direita? Não havia negros que venderam outros negros aos brancos? Esses também

O Duelo, por Camilla Agostini

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O duelo Era daquelas cozinhas grandes de fazenda antiga, nunca esqueço. Tinha umas panelas de ferro penduradas em cima do fogão e uma brasinha sempre queimando. Num armário de canto ficavam guardados uns pratos finos da família, que só usavam na hora do jantar. No meio ficava um mesão de madeira muito pesado, daqueles difíceis de arrastar, com todo tipo de comida que era feita todo dia. Tigela com leite, batata descascada, um monte de farinha, uma galinha degolada, coisas assim. Eu costumava chegar de mansinho, gostava de espiar a cozinheira grandona mexendo nas panelas, sempre a espreita pelo feijão preto que, requentado, ficava ainda melhor. Espichava o olho sempre para as três coisas mais importantes da cozinha: a panela de feijão, a cozinheira e umas cumbucas empilhadas numa prateleira. Era tudo muito simples: distrair a velha, pegar uma cumbuca e correr com o feijão. Pensa que era fácil? Ela não parava quieta. Às vezes, fazendo meu plantão de espia do lado de fora,

A Profissão de Papai

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(Trecho do livro "O Interesse pelas Coisas", lançado em 16/02/17 por Eduardo Villela) Quando menina quis saber o que papai fazia. Era sempre um mistério, a porta do escritório trancada. Mamãe me distraía e não deixava nem chegar perto da maçaneta. Papai saía do escritório para almoçar conosco, sempre meio calado, e, às vezes, segurando a valise preta, deixava o apartamento para voltar só dali a algumas horas. Aonde papai foi, mamãe? Pra uma reunião de trabalho, querida. Ele vai demorar? Acho que não... Não saber com o que papai trabalhava foi crescendo assim como uma coisa normal pra mim, algo que sempre esteve ali no meio do caminho. Tanto que as garotas na escola diziam o que o pai delas faziam e eu inventava uma coisa qualquer: advogado, cobrador de ônibus, médico. Eu não precisava saber com o que papai trabalhava ou, melhor que isso, a profissão de papai era misteriosa e por isso mesmo mais bacana que todas as outras. Minha família não tinha nada de diferente

Feijoada

V erbete de “O dicionário amoroso do Rio de Janeiro”, de Alvaro Costa e Silva (mais conhecido como Marechal). Ed. Casarão do Verbo, 2015, págs 79 a 82. Quanto maior o calor, mais o carioca come feijoada. Com o verão no auge, entre os meses de janeiro e fevereiro, fica impossível fugir dela. É como se vivêssemos naquela cena do filme “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade: mergulhados em orgia numa piscina cheia de lombo, lingüiça, costela, paio, orelha, chispe, focinho, pé, rabo. Para onde quer que você olhe há opções: restaurantes mais ou menos chiques, botequins, quiosques de praia, hotéis, clubes e até livrarias. As escolas de samba dão a largada, entupindo suas quadras aos sábados, quando são servidas mais de mil unidades do prato. O impressionante preparo, em cozinhas industriais, para o qual contribuem não só mulheres, mas também homens, tem início na quinta-feira. Não são apenas as carnes e o feijão: pense nos molhos de couve, nas dúzias de laranjas, nas cebolas e cab

O Primeiro Amor, por Eduardo Villela

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Disseram-me uma vez, não, me disseram trinta vezes que na vida só existe o primeiro amor. Se verdade ou não, foda-se, tentei amar outras vezes, mas não deu certo. Ou deu por certo tempo. Que é dar certo? O primeiro beijo do meu primeiro amor foi na décima sétima pessoa que beijei na vida, e foi só nesse dia que percebi que o beijo pode, sim, ser prazeroso. Dizem que há aqueles que passam pela vida inteira sem ter o tal primeiro amor, há também os que só o conhecem no finalzinho da vida. Falam que existe aquela ou aquele que tem seu primeiro amor no último beijo de sua trajetória na Terra, no limiar do precipício da vida pro nada, como o zangão finalmente descoberto por sua rainha-abelha predestinada, ao pé da morte. Deixando essa digressão de lado e voltando à história, queria dizer que os amores que vivi nos anos depois do primeiro amor tiveram gosto de aventura de café coado pela segunda vez. Demorou muito pro gosto do primeiro amor sair da minha boca e deixar virem