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Mostrando postagens de agosto, 2016

As Formas do Silêncio

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por Eni Orlandi, mote para o encontro de 06/09/2016 "Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio significante. Quando o homem, em sua história, percebeu o silêncio como significação, criou a linguagem para retê-lo. O ato de falar é o de separar, distinguir e, paradoxalmente, vislumbrar o silêncio e evitá-lo. Esse gesto disciplina o significar, pois já é um projeto de sedentarização do sentido. A linguagem estabiliza o movimento dos sentidos. No silêncio, ao contrário, sentido e sujeito se movem largamente. Em suma: quando o homem individualizou (instituiu) o silêncio como algo significativamente discernível, ele estabeleceu o espaço da linguagem." Eni Puccinelli Orlandi foi docente da USP e professora titular de análise de discurso da Unicamp, onde é atualmente professora colaboradora. É pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos da Unicamp (Labeurb) e profe

Flor Vermelha

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Uma menina estava com raiva. Seus pais a levaram a um museu contra a vontade dela e eles já estavam há duas horas na fila. A menina vestia um vestido vermelho, meia-calça branca, sapatilhas pretas e um casaco do Mickey Mouse tão grande que as mangas cobriam suas mãos. Um laço vermelho fora cuidadosamente amarrado aos seus cabelos castanhos. A menina gostava muito da cor vermelha. Após mais alguns minutos eles puderam entrar no museu. As portas da exposição foram abertas e primeira pintura a ser contemplada foi uma natureza morta: peras, uvas e maçãs em uma cesta. “Tem uma cesta de frutas na cozinha de casa”, a menina pensou. O próximo quadro era um retrato de uma menina com uma fita verde na cabeça. “Eu poderia ficar na frente de um espelho usando uma fita com uma cor bem mais legal”. Outro quadro era uma representação abstrata de duas pessoas conversando. “Meus desenhos são melhores”. E assim os minutos foram passando. Durante aquele tempo havia apenas uma coisa divertida: ob

Perguntas de Curumim

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Por: Eduardo Villela        Pedro deitou a folha de papel em branco diante de si, no chão da sala. Queria criar uma fábula sobre adultos. Uma fábula em que as pessoas apenas afirmavam, nunca faziam perguntas. Os adultos eram assim, para ele. Os amigos dos pais que visitavam a casa à noite não faziam perguntas, só diziam coisas. Não sabia ainda se ia desenhar ou contar a história em texto. Ou se os dois juntos. As pessoas que iam lá só tinham algo a dizer, nunca a saber. Por que eram desse jeito, ele não sabia responder. Precisava compreender isso rápido, antes de ficar adulto. E se amanhã, de repente, eu virar adulto e não mais poder perguntar isso, também? Nunca vou saber?        A fábula era sobre uma aldeia em que não se fazia perguntas. Podia se passar nos dias de hoje, no futuro, antigamente. Mas era uma tribo que vivia no meio da floresta, sem ninguém por perto num raio de muitos quilômetros. Eles quase não tinham contato com outras aldeias, até o dia em que

Panela de Barro

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por Maiara Líbano Como não era visível, por um tempo não se fazia notar. Ao contrário, um cromossomo a mais ou a menos não faz mistério. O distúrbio logo se mostra. Mas esse era um tipo de moléstia sem rosto. Uma imperfeição que ia aparecendo aos poucos. Ainda bebê a mãe suspeitava, estranhava o balbucio, um balbucio monótono de som, um balbucio tardio. Mas a família tratava logo de espantar esses maus pensamentos da mãe. - É só um bebê, como pode se queixar de qualquer coisa mulher? Num mundo tão estressado tens um bebê calmo. Não se afeta pelas coisas, vai ver já nasceu sabido. Pode ser um presente de Deus! Mas a mãe percebia o filho. E percebia que o filho não percebia as coisas. Nem as coisas, nem as pessoas. Porque tinha suas ausências. Os olhos parados no vazio. A mãe sentia que nada poderia interromper seu devaneio. Os brinquedos, os penduricalhos do berço. Nada. O menino era um grande sono. Tinha muita vida interior. E somente interior. A parede invisível entre ele

As Noites devem morrer

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por Vinicius Varela A minha história de amor com Júlia é a história de como eu tentei mantê-la viva, como fiz de tudo para que a sua vontade de viver fosse maior que a sua pulsão de morte e não consegui. Fracassei em fazer com que se agarrasse à vida. A morte rondava nossa casa. Eu sentia como ela fazia minha barba com sua gadanha como se ela fosse uma navalha. A morte era nossa convidada. Júlia a havia deixado entrar. Quando eu desenhei o círculo mágico no chão de casa já era tarde. Não havia contrafeitiço capaz de nos proteger. A palavra tem poder. A todo instante os homens proferem maldições. A morte já havia sido invocada. Júlia pronunciado em voz alta que preferia morrer a continuar vivendo desse jeito. Júlia era iniciada em mistérios. Guardiã de escuridões. Com dolorosa certeza sou obrigado a afirmar que jamais me aproximei do coração dela. Ela era toda escuros. Júlia ninava o silêncio. De sua treva me revelava dentes de vampira. Dente lindos, claros. E essa é toda clareza q

Menino a Bico de Pena

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(Mote lido por Maiara Líbano) Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticarão: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu autossacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito.  E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco - pela bondade necessária com que nos salvamos ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida.  Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura. Clarice Lispector, Felicidade Clandestina

MAO GO

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por Guilherme Preger Um guerrilheiro deve estar no meio da massa como um peixe no oceano, dizia o camarada Mao. A multidão deve ser a extensão de minha pele em mil faces e facetas, multiforme, multitudinária, multiarticulada. A massa me protege com sua cor e calor e mimetizo-me em sua imensa variedade físico-corporal. Ser o um qualquer, o cara da esquina, o homem do povo. Afinal, minha tarefa é a missão do povo. Por causa dessas olimpíadas, removeram milhares de famílias pobres de suas casas. Por causa dessas olimpíadas prenderam inocentes que sequer cometeram um crime. Por causa dessas olimpíadas deram um golpe no país, afastaram uma guerrilheira honesta da Presidência, para melhor reprimir o povo e garantir o megaevento e o lucro dos financistas globais. Me aproximo da estação do Maracanã, no metrô lotado e festivo. Estou alheio a esse clima de alegria forçada. Estou cansado da falsa alegria dos aparelhos midiáticos. Estou cansado dessa servidão voluntária do capitali