Vou ser fumante agora - Vivian Pizzinga
Vou
ser fumante agora
Uma vez que se olhou no
espelho, e era à tarde, e era sábado, e ninguém havia ligado, e ninguém havia
respondido aos e-mails, nem ao whatsapp, e o silêncio era uma redoma espessa,
uma vez que se olhou no espelho em pleno sábado e se sentiu morta, e se sentiu
torta, e se sentiu porta, e teve a certeza de que não, não, definitivamente não
era linda, definitivamente não era gostosa, definitivamente nem bonitinha era,
e tinha espinhas, apesar de não ser adolescente, e tinha uma barriga que não
podia ser descrita no diminutivo, uma vez que seus olhos não eram lânguidos
tampouco penetrantes, seus lábios não eram carnudos, suas maçãs do rosto não
eram salientes, e uma vez que desconfiava seriamente de que seu rosto não tinha
maçãs, pensou: vou fumar um cigarro. Preciso fumar um cigarro.
Uma vez que não fumava,
que não tinha cigarros em casa, que não sabia nada a respeito de marcas de
cigarro, que se deu conta de que a fumaça de cigarro às vezes a incomodava,
sobretudo em ambientes fechados, pensou que era uma inauguração sem banda o que
acontecia em sua vida: a decisão, muito bem delimitada, de que começaria a
fumar. E mais, sua decisão era indeterminada, ainda que bem delimitada. Não havia
decidido fumar apenas um cigarro, não havia decidido experimentar essa coisa
inteiramente nova e inteiramente velha que é fumar um cigarro e ver como se
sente, emitir opiniões para si mesma, tossir ou não tossir, sentir arder a
garganta ou não, sujar o sofá com a cinza. Era mais. Era muito mais. Era sem
comparação: vou ser fumante agora, ela pensou.
Então resolveu que o
sábado podia ser outro, que o sábado, por ser sábado, era a pista livre para
inaugurações inauditas, aquela casa vazia, aquela falta de respostas, aquele
reflexo insípido no espelho oval do banheiro, e calçou o chinelo, pegou a chave
e meteu umas quantas notas de dinheiro no bolso. Fechou a porta de casa atrás
de si, desceu os dois andares de escada para habituar-se a um exercício
qualquer sem propósito e foi à rua. No jornaleiro que havia quase na esquina
ela viu que havia vários cigarros. Qual escolheria, qual maço, qual dentre
todas as ofertas exibidas na banca?
“Boa tarde, o senhor tem
aquele Free?”, perguntou, insegura. “Saiu de linha”, disse o seu Jair, o
jornaleiro de anos, que sempre vendeu figurinhas, depois revistas Capricho,
depois coleções de clássicos da literatura e alguns filmes, depois revistas de
esquerda. Quanto a ele, nenhum espanto, era como se ela sempre comprasse Free. “Como
saiu de linha?”, fez ela, como se sempre comprasse Free. “Aí não me pergunte,
não sei como foi, sei que saiu”. E, então, desapontada, quase pensando em
desistir de sua inauguração, lembrou-se que podia pedir outro. “E Charm? Tem
Charm?” Mas seu Jair, agora mirando-a de relance, o que não tinha feito antes,
disse: “Ih, esse saiu de linha também”. “Também???”, fez ela, incrédula. “Também”,
ele confirmou, com aquela cara de resignação que só os jornaleiros com mais de sessenta
anos fazem, sabe qual? Essa mesmo.
O que você tem aí então
que não tenha saído de linha, seu Jair?
Dunhill, Malboro, Derby, Hollywood, Luckystrike, Vogue...
Esse Vogue é bonito,
hein, deixa ver.
Qual cor?
Vai o lilás mesmo.
O jornaleiro passou a
caixa fina de Vogue e ela a examinou, evitando olhar o verso e aquelas fotos
pavorosas, nada estimulantes para quem havia se descoberto feia, sem programas
no sábado, sem maçãs no rosto e com a decisão periclitante de que seria fumante
agora.
“Gostei, vou levar”. “Um
só?”, perguntou o jornaleiro. “Sim, quanto é?” “8,75”. “Como é que é, seu Jair!?”
“8,75”. “Mas está caríssimo esse cigarro, seu Jair, surreal, onde é que a gente
vai parar?!” “O preço é tabelado”. “Tem algum mais barato aí?” “Bom, tem o
Derby e também o Dunhill”. Ela ficou na dúvida, Derby, Dunhill, Derby, Dunhill.
“Você acha que eu devo levar qual, seu Jair?” “Olha, o Vogue pode até ser mais
caro, mas é mais fraco, então, se o barato sai caro, leva o Vogue”. Ela achou
que era isso mesmo, que seu Jair estava coberto de razão, que o barato sai caro,
que o sábado merecia uma extravagância qualquer, que toda inauguração tem um
custo, que é melhor que o custo seja no bolso e não nos pulmões, e que se os
pulmões tivessem que pagar algum preço, que pudesse ser minimizado, e, sem mais
delongas mas piscando muito, um tique inteiramente novo, pegou uma nota de dez,
entregou ao jornaleiro, recebeu o cigarro e o troco, voltou para casa, abriu o
cigarro, estranhou que fosse tão fino, tão delgado, tão frágil, e, quando o
colocou na boca, pensou: hum, não tem fósforo em casa e esqueci de comprar o
isqueiro.
Conto escrito para o encontro de 12/05/2015
Vivian Pizzinga é
autora de “Dias Roucos e Vontades Absurdas”, pela Editora Oito e Meio. É também
psicóloga. Tem um gato chamado Vuvu. No outono e no inverno, toma chá para
esquentar as mãos.
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